CARTA ENCÍCLICA
LAUDATO SI’
DO SANTO PADREFRANCISCO
SOBRE O CUIDADO DA CASA COMUM
BR |
IT |
1. «LAUDATO SI’, mi’ Signore –
Louvado sejas, meu Senhor», cantava São Francisco de Assis. Neste gracioso
cântico, recordava-nos que a nossa casa comum se pode comparar ora a uma irmã,
com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus
braços: «Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos
sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras».[1]
2. Esta irmã clama contra o mal que
lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela
colocou. Crescemos a pensar que éramos seus proprietários e dominadores,
autorizados a saqueá-la. A violência, que está no coração humano ferido pelo
pecado, vislumbra-se nos sintomas de doença que notamos no solo, na água, no ar
e nos seres vivos. Por isso, entre os pobres mais abandonados e maltratados,
conta-se a nossa terra oprimida e devastada, que «geme e sofre as dores do
parto» (Rm 8, 22). Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn 2,
7). O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar
permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos.
Nada deste mundo nos é indiferente
3. Mais de cinquenta anos atrás,
quando o mundo estava oscilando sobre o fio duma crise nuclear, o Santo PapaJoão XXIIIescreveu uma
encíclica na qual não se limitava a rejeitar a guerra, mas quis transmitir uma
proposta de paz. Dirigiu a sua mensagem Pacem in terris a
todo o mundo católico, mas acrescentava: e a todas as pessoas de boa vontade.
Agora, à vista da deterioração global do ambiente, quero dirigir-me a cada
pessoa que habita neste planeta. Na minha exortação Evangelii
gaudium, escrevi aos membros da Igreja, a fim de os mobilizar
para um processo de reforma missionária ainda pendente. Nesta encíclica,
pretendo especialmente entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum.
4. Oito anos depois da Pacem in terris,
em 1971, o Beato Papa Paulo VI referiu-se à
problemática ecológica, apresentando-a como uma crise que é «consequência
dramática» da actividade descontrolada do ser humano: «Por motivo de uma
exploração inconsiderada da natureza, [o ser humano] começa a correr o risco de
a destruir e de vir a ser, também ele, vítima dessa degradação».[2] E, dirigindo-se à FAO, falou da
possibilidade duma «catástrofe ecológica sob o efeito da explosão da
civilização industrial», sublinhando a «necessidade urgente duma mudança
radical no comportamento da humanidade», porque «os progressos científicos mais
extraordinários, as invenções técnicas mais assombrosas, o desenvolvimento
económico mais prodigioso, se não estiverem unidos a um progresso social e
moral, voltam-se necessariamente contra o homem».[3]
5. São João Paulo II debruçou-se,
com interesse sempre maior, sobre este tema. Na sua primeira encíclica,
advertiu que o ser humano parece «não dar-se conta de outros significados do
seu ambiente natural, para além daqueles que servem somente para os fins de um
uso ou consumo imediatos».[4] Mais tarde, convidou a uma conversãoecológica
global.[5] Entretanto fazia notar o pouco
empenho que se põe em «salvaguardar as condições morais de uma autêntica
ecologia humana».[6] A destruição do ambiente humano é um
facto muito grave, porque, por um lado, Deus confiou o mundo ao ser humano e,
por outro, a própria vida humana é um dom que deve ser protegido de várias
formas de degradação. Toda a pretensão de cuidar e melhorar o mundo requer
mudanças profundas «nos estilos de vida, nos modelos de produção e de consumo,
nas estruturas consolidadas de poder, que hoje regem as sociedades».[7] O progresso humano autêntico possui
um carácter moral e pressupõe o pleno respeito pela pessoa humana, mas deve
prestar atenção também ao mundo natural e «ter em conta a natureza de cada ser
e as ligações mútuas entre todos, num sistema ordenado».[8] Assim, a capacidade do ser humano
transformar a realidade deve desenvolver-se com base na doação originária das
coisas por parte de Deus.[9]
6. O meu predecessor, Bento XVI,
renovou o convite a «eliminar as causas estruturais das disfunções da economia
mundial e corrigir os modelos de crescimento que parecem incapazes de garantir
o respeito do meio ambiente».[10]Lembrou que o mundo não pode ser
analisado concentrando-se apenas sobre um dos seus aspectos, porque «o livro da
natureza é uno e indivisível», incluindo, entre outras coisas, o ambiente, a
vida, a sexualidade, a família, as relações sociais. É que «a degradação da
natureza está estreitamente ligada à cultura que molda a convivência humana».[11] O Papa Bento XVI propôs-nos
reconhecer que o ambiente natural está cheio de chagas causadas pelo nosso
comportamento irresponsável; o próprio ambiente social tem as suas chagas. Mas,
fundamentalmente, todas elas se ficam a dever ao mesmo mal, isto é, à ideia de
que não existem verdades indiscutíveis a guiar a nossa vida, pelo que a
liberdade humana não tem limites. Esquece-se que «o homem não é apenas uma
liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é
espírito e vontade, mas é também natureza».[12]Com paterna solicitude, convidou-nos a
reconhecer que a criação resulta comprometida «onde nós mesmos somos a última
instância, onde o conjunto é simplesmente nossa propriedade e onde o consumimos
somente para nós mesmos. E o desperdício da criação começa onde já não
reconhecemos qualquer instância acima de nós, mas vemo-nos unicamente a nós
mesmos».[13]
Unidos por uma preocupação comum
7.
Estas contribuições dos Papas recolhem a reflexão de inúmeros cientistas,
filósofos, teólogos e organizações sociais que enriqueceram o pensamento da
Igreja sobre estas questões. Mas não podemos ignorar que, também fora da Igreja
Católica, noutras Igrejas e Comunidades cristãs – bem como noutras religiões –
se tem desenvolvido uma profunda preocupação e uma reflexão valiosa sobre estes
temas que a todos nos estão a peito. Apenas para dar um exemplo particularmente
significativo, quero retomar brevemente parte da contribuição do amado
Patriarca Ecuménico Bartolomeu, com quem partilhamos a esperança da plena comunhão
eclesial.
8. O Patriarca Bartolomeu tem-se
referido particularmente à necessidade de cada um se arrepender do próprio modo
de maltratar o planeta, porque «todos, na medida em que causamos pequenos danos
ecológicos», somos chamados a reconhecer «a nossa contribuição – pequena ou
grande – para a desfiguração e destruição do ambiente».[14] Sobre este ponto, ele pronunciou-se
repetidamente, de maneira firme e encorajadora, convidando-nos a reconhecer os
pecados contra a criação: «Quando os seres humanos destroem a biodiversidade na
criação de Deus; quando os seres humanos comprometem a integridade da terra e
contribuem para a mudança climática, desnudando a terra das suas florestas
naturais ou destruindo as suas zonas húmidas; quando os seres humanos
contaminam as águas, o solo, o ar… tudo isso é pecado».[15] Porque «um crime contra a natureza
é um crime contra nós mesmos e um pecado contra Deus».[16]
9. Ao mesmo tempo Bartolomeu chamou a
atenção para as raízes éticas e espirituais dos problemas ambientais, que nos
convidam a encontrar soluções não só na técnica mas também numa mudança do ser
humano; caso contrário, estaríamos a enfrentar apenas os sintomas. Propôs-nos
passar do consumo ao sacrifício, da avidez à generosidade, do desperdício à
capacidade de partilha, numa ascese que «significa aprender a dar, e não simplesmente
renunciar. É um modo de amar, de passar pouco a pouco do que eu quero àquilo de
que o mundo de Deus precisa. É libertação do medo, da avidez, da dependência».[17] Além disso nós, cristãos, somos
chamados a «aceitar o mundo como sacramento de comunhão, como forma de
partilhar com Deus e com o próximo numa escala global. É nossa humilde
convicção que o divino e o humano se encontram no menor detalhe da túnica
inconsútil da criação de Deus, mesmo no último grão de poeira do nosso
planeta».[18]
São Francisco de Assis
10.
Não quero prosseguir esta encíclica sem invocar um modelo belo e motivador.
Tomei o seu nome por guia e inspiração, no momento da minha eleição para Bispo
de Roma. Acho que Francisco é o exemplo por excelência do cuidado pelo que é
frágil e por uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade. É o
santo padroeiro de todos os que estudam e trabalham no campo da ecologia, amado
também por muitos que não são cristãos. Manifestou uma atenção particular pela
criação de Deus e pelos mais pobres e abandonados. Amava e era amado pela sua
alegria, a sua dedicação generosa, o seu coração universal. Era um místico e um
peregrino que vivia com simplicidade e numa maravilhosa harmonia com Deus, com
os outros, com a natureza e consigo mesmo. Nele se nota até que ponto são
inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o
empenhamento na sociedade e a paz interior.
11. O seu testemunho mostra-nos
também que uma ecologia integral requer abertura para categorias que
transcendem a linguagem das ciências exactas ou da biologia e nos põem em
contacto com a essência do ser humano. Tal como acontece a uma pessoa quando se
enamora por outra, a reacção de Francisco, sempre que olhava o sol, a lua ou os
minúsculos animais, era cantar, envolvendo no seu louvor todas as outras
criaturas. Entrava em comunicação com toda a criação, chegando mesmo a pregar
às flores «convidando-as a louvar o Senhor, como se gozassem do dom da razão».[19] A sua reacção ultrapassava de longe
uma mera avaliação intelectual ou um cálculo económico, porque, para ele,
qualquer criatura era uma irmã, unida a ele por laços de carinho. Por isso,
sentia-se chamado a cuidar de tudo o que existe. São Boaventura, seu discípulo,
contava que ele, «enchendo-se da maior ternura ao considerar a origem comum de
todas as coisas, dava a todas as criaturas – por mais desprezíveis que
parecessem – o doce nome de irmãos e irmãs».[20] Esta convicção não pode ser
desvalorizada como romantismo irracional, pois influi nas opções que determinam
o nosso comportamento. Se nos aproximarmos da natureza e do meio ambiente sem
esta abertura para a admiração e o encanto, se deixarmos de falar a língua da
fraternidade e da beleza na nossa relação com o mundo, então as nossas atitudes
serão as do dominador, do consumidor ou de um mero explorador dos recursos
naturais, incapaz de pôr um limite aos seus interesses imediatos. Pelo
contrário, se nos sentirmos intimamente unidos a tudo o que existe, então
brotarão de modo espontâneo a sobriedade e a solicitude. A pobreza e a
austeridade de São Francisco não eram simplesmente um ascetismo exterior, mas
algo de mais radical: uma renúncia a fazer da realidade um mero objecto de uso
e domínio.
12. Por outro lado, São Francisco,
fiel à Sagrada Escritura, propõe-nos reconhecer a natureza como um livro
esplêndido onde Deus nos fala e transmite algo da sua beleza e bondade: «Na
grandeza e na beleza das criaturas, contempla-se, por analogia, o seu Criador»
(Sab 13, 5) e «o que é invisível n’Ele – o seu eterno poder e
divindade – tornou-se visível à inteligência, desde a criação do mundo, nas
suas obras» (Rm 1, 20). Por isso, Francisco pedia que, no convento,
se deixasse sempre uma parte do horto por cultivar para aí crescerem as ervas
silvestres, a fim de que, quem as admirasse, pudesse elevar o seu pensamento a
Deus, autor de tanta beleza.[21] O mundo é algo mais do que um
problema a resolver; é um mistério gozoso que contemplamos na alegria e no
louvor.
O meu apelo
13.
O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir
toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral,
pois sabemos que as coisas podem mudar. O Criador não nos abandona, nunca recua
no seu projecto de amor, nem Se arrepende de nos ter criado. A humanidade
possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum.
Desejo agradecer, encorajar e manifestar apreço a quantos, nos mais variados
sectores da actividade humana, estão a trabalhar para garantir a protecção da
casa que partilhamos. Uma especial gratidão é devida àqueles que lutam, com
vigor, por resolver as dramáticas consequências da degradação ambiental na vida
dos mais pobres do mundo. Os jovens exigem de nós uma mudança; interrogam-se
como se pode pretender construir um futuro melhor, sem pensar na crise do meio
ambiente e nos sofrimentos dos excluídos.
14. Lanço um convite urgente a
renovar o diálogo sobre a maneira como estamos a construir o futuro do planeta.
Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental, que
vivemos, e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós.
O movimento ecológico mundial já percorreu um longo e rico caminho, tendo
gerado numerosas agregações de cidadãos que ajudaram na consciencialização.
Infelizmente, muitos esforços na busca de soluções concretas para a crise
ambiental acabam, com frequência, frustrados não só pela recusa dos poderosos,
mas também pelo desinteresse dos outros. As atitudes que dificultam os caminhos
de solução, mesmo entre os crentes, vão da negação do problema à indiferença, à
resignação acomodada ou à confiança cega nas soluções técnicas. Precisamos de
nova solidariedade universal. Como disseram os bispos da África do Sul, «são
necessários os talentos e o envolvimento de todos para reparar
o dano causado pelos humanos sobre a criação de Deus».[22] Todos podemos colaborar, como
instrumentos de Deus, no cuidado da criação, cada um a partir da sua cultura,
experiência, iniciativas e capacidades.
15.
Espero que esta carta encíclica, que se insere no magistério social da Igreja,
nos ajude a reconhecer a grandeza, a urgência e a beleza do desafio que temos
pela frente. Em primeiro lugar, farei uma breve resenha dos vários aspectos da
actual crise ecológica, com o objectivo de assumir os melhores frutos da
pesquisa científica actualmente disponível, deixar-se tocar por ela em
profundidade e dar uma base concreta ao percurso ético e espiritual seguido. A
partir desta panorâmica, retomarei algumas argumentações que derivam da
tradição judaico-cristã, a fim de dar maior coerência ao nosso compromisso com
o meio ambiente. Depois procurarei chegar às raízes da situação actual, de modo
a individuar não apenas os seus sintomas, mas também as causas mais profundas.
Poderemos assim propor uma ecologia que, nas suas várias dimensões, integre o
lugar específico que o ser humano ocupa neste mundo e as suas relações com a
realidade que o rodeia. À luz desta reflexão, quereria dar mais um passo,
verificando algumas das grandes linhas de diálogo e de acção que envolvem seja
cada um de nós seja a política internacional. Finalmente, convencido – como
estou – de que toda a mudança tem necessidade de motivações e dum caminho
educativo, proporei algumas linhas de maturação humana inspiradas no tesouro da
experiência espiritual cristã.
16.
Embora cada capítulo tenha a sua temática própria e uma metodologia específica,
o sucessivo retoma por sua vez, a partir duma nova perspectiva, questões
importantes abordadas nos capítulos anteriores. Isto diz respeito especialmente
a alguns eixos que atravessam a encíclica inteira. Por exemplo: a relação
íntima entre os pobres e a fragilidade do planeta, a convicção de que tudo está
estreitamente interligado no mundo, a crítica do novo paradigma e das formas de
poder que derivam da tecnologia, o convite a procurar outras maneiras de
entender a economia e o progresso, o valor próprio de cada criatura, o sentido
humano da ecologia, a necessidade de debates sinceros e honestos, a grave
responsabilidade da política internacional e local, a cultura do descarte e a
proposta dum novo estilo de vida. Estes temas nunca se dão por encerrados nem
se abandonam, mas são constantemente retomados e enriquecidos.
CAPÍTULO
I
O QUE ESTÁ A ACONTECER À NOSSA CASA
17.
As reflexões teológicas ou filosóficas sobre a situação da humanidade e do
mundo podem soar como uma mensagem repetida e vazia, se não forem apresentadas
novamente a partir dum confronto com o contexto actual no que este tem de
inédito para a história da humanidade. Por isso, antes de reconhecer como a fé
traz novas motivações e exigências face ao mundo de que fazemos parte, proponho
que nos detenhamos brevemente a considerar o que está a acontecer à nossa casa
comum.
18.
A contínua aceleração das mudanças na humanidade e no planeta junta-se, hoje, à
intensificação dos ritmos de vida e trabalho, que alguns, em espanhol, designam
por «rapidación». Embora a mudança faça parte da dinâmica dos sistemas
complexos, a velocidade que hoje lhe impõem as acções humanas contrasta com a
lentidão natural da evolução biológica. A isto vem juntar-se o problema de que
os objectivos desta mudança rápida e constante não estão necessariamente orientados
para o bem comum e para um desenvolvimento humano sustentável e integral. A
mudança é algo desejável, mas torna-se preocupante quando se transforma em
deterioração do mundo e da qualidade de vida de grande parte da humanidade.
19.
Depois dum tempo de confiança irracional no progresso e nas capacidades
humanas, uma parte da sociedade está a entrar numa etapa de maior
consciencialização. Nota-se uma crescente sensibilidade relativamente ao meio
ambiente e ao cuidado da natureza, e cresce uma sincera e sentida preocupação
pelo que está a acontecer ao nosso planeta. Façamos uma resenha, certamente
incompleta, das questões que hoje nos causam inquietação e já não se podem
esconder debaixo do tapete. O objectivo não é recolher informações ou
satisfazer a nossa curiosidade, mas tomar dolorosa consciência, ousar
transformar em sofrimento pessoal aquilo que acontece ao mundo e, assim,
reconhecer a contribuição que cada um lhe pode dar.
1. Poluição e mudanças climáticas
Poluição, resíduos e cultura do
descarte
20.
Existem formas de poluição que afectam diariamente as pessoas. A exposição aos
poluentes atmosféricos produz uma vasta gama de efeitos sobre a saúde,
particularmente dos mais pobres, e provocam milhões de mortes prematuras.
Adoecem, por exemplo, por causa da inalação de elevadas quantidades de fumo
produzido pelos combustíveis utilizados para cozinhar ou aquecer-se. A isto vem
juntar-se a poluição que afecta a todos, causada pelo transporte, pelos fumos
da indústria, pelas descargas de substâncias que contribuem para a acidificação
do solo e da água, pelos fertilizantes, insecticidas, fungicidas, pesticidas e
agro-tóxicos em geral. Na realidade a tecnologia, que, ligada à finança,
pretende ser a única solução dos problemas, é incapaz de ver o mistério das múltiplas
relações que existem entre as coisas e, por isso, às vezes resolve um problema
criando outros.
21.
Devemos considerar também a poluição produzida pelos resíduos, incluindo os
perigosos presentes em variados ambientes. Produzem-se anualmente centenas de
milhões de toneladas de resíduos, muitos deles não biodegradáveis: resíduos
domésticos e comerciais, detritos de demolições, resíduos clínicos,
electrónicos e industriais, resíduos altamente tóxicos e radioactivos. A terra,
nossa casa, parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo. Em
muitos lugares do planeta, os idosos recordam com saudade as paisagens de
outrora, que agora vêem submersas de lixo. Tanto os resíduos industriais como
os produtos químicos utilizados nas cidades e nos campos podem produzir um
efeito de bioacumulação nos organismos dos moradores nas áreas limítrofes, que
se verifica mesmo quando é baixo o nível de presença dum elemento tóxico num
lugar. Muitas vezes só se adoptam medidas quando já se produziram efeitos irreversíveis
na saúde das pessoas.
22.
Estes problemas estão intimamente ligados à cultura do descarte, que afecta
tanto os seres humanos excluídos como as coisas que se convertem rapidamente em
lixo. Note-se, por exemplo, como a maior parte do papel produzido se desperdiça
sem ser reciclado. Custa-nos a reconhecer que o funcionamento dos ecossistemas
naturais é exemplar: as plantas sintetizam substâncias nutritivas que alimentam
os herbívoros; estes, por sua vez, alimentam os carnívoros que fornecem significativas
quantidades de resíduos orgânicos, que dão origem a uma nova geração de
vegetais. Ao contrário, o sistema industrial, no final do ciclo de produção e
consumo, não desenvolveu a capacidade de absorver e reutilizar resíduos e
escórias. Ainda não se conseguiu adoptar um modelo circular de produção que
assegure recursos para todos e para as gerações futuras e que exige limitar, o
mais possível, o uso dos recursos não-renováveis, moderando o seu consumo,
maximizando a eficiência no seu aproveitamento, reutilizando e reciclando-os. A
resolução desta questão seria uma maneira de contrastar a cultura do descarte
que acaba por danificar o planeta inteiro, mas nota-se que os progressos neste
sentido são ainda muito escassos.
O clima como bem comum
23.
O clima é um bem comum, um bem de todos e para todos. A nível global, é um
sistema complexo, que tem a ver com muitas condições essenciais para a vida
humana. Há um consenso científico muito consistente, indicando que estamos
perante um preocupante aquecimento do sistema climático. Nas últimas décadas,
este aquecimento foi acompanhado por uma elevação constante do nível do mar,
sendo difícil não o relacionar ainda com o aumento de acontecimentos
meteorológicos extremos, embora não se possa atribuir uma causa cientificamente
determinada a cada fenómeno particular. A humanidade é chamada a tomar
consciência da necessidade de mudanças de estilos de vida, de produção e de
consumo, para combater este aquecimento ou, pelo menos, as causas humanas que o
produzem ou acentuam. É verdade que há outros factores (tais como o vulcanismo,
as variações da órbita e do eixo terrestre, o ciclo solar), mas numerosos
estudos científicos indicam que a maior parte do aquecimento global das últimas
décadas é devida à alta concentração de gases com efeito de estufa (anidrido
carbónico, metano, óxido de azoto, e outros) emitidos sobretudo por causa da
actividade humana. A sua concentração na atmosfera impede que o calor dos raios
solares reflectidos pela terra se dilua no espaço. Isto é particularmente
agravado pelo modelo de desenvolvimento baseado no uso intensivo de
combustíveis fósseis, que está no centro do sistema energético mundial. E
incidiu também a prática crescente de mudar a utilização do solo,
principalmente o desflorestamento para finalidade agrícola.
24.
Por sua vez, o aquecimento influi sobre o ciclo do carbono. Cria um ciclo
vicioso que agrava ainda mais a situação e que incidirá sobre a disponibilidade
de recursos essenciais como a água potável, a energia e a produção agrícola das
áreas mais quentes e provocará a extinção de parte da biodiversidade do
planeta. O derretimento das calotas polares e dos glaciares a grande altitude
ameaça com uma libertação, de alto risco, de gás metano, e a decomposição da
matéria orgânica congelada poderia acentuar ainda mais a emissão de anidrido
carbónico. Entretanto a perda das florestas tropicais piora a situação, pois
estas ajudam a mitigar a mudança climática. A poluição produzida pelo anidrido
carbónico aumenta a acidez dos oceanos e compromete a cadeia alimentar marinha.
Se a tendência actual se mantiver, este século poderá ser testemunha de
mudanças climáticas inauditas e duma destruição sem precedentes dos
ecossistemas, com graves consequências para todos nós. Por exemplo, a subida do
nível do mar pode criar situações de extrema gravidade, se se considera que um
quarto da população mundial vive à beira-mar ou muito perto dele, e a maior
parte das megacidades estão situadas em áreas costeiras.
25.
As mudanças climáticas são um problema global com graves implicações
ambientais, sociais, económicas, distributivas e políticas, constituindo
actualmente um dos principais desafios para a humanidade. Provavelmente os
impactos mais sérios recairão, nas próximas décadas, sobre os países em vias de
desenvolvimento. Muitos pobres vivem em lugares particularmente afectados por
fenómenos relacionados com o aquecimento, e os seus meios de subsistência
dependem fortemente das reservas naturais e dos chamados serviços do
ecossistema como a agricultura, a pesca e os recursos florestais. Não possuem
outras disponibilidades económicas nem outros recursos que lhes permitam
adaptar-se aos impactos climáticos ou enfrentar situações catastróficas, e
gozam de reduzido acesso a serviços sociais e de protecção. Por exemplo, as
mudanças climáticas dão origem a migrações de animais e vegetais que nem sempre
conseguem adaptar-se; e isto, por sua vez, afecta os recursos produtivos dos
mais pobres, que são forçados também a emigrar com grande incerteza quanto ao
futuro da sua vida e dos seus filhos. É trágico o aumento de emigrantes em fuga
da miséria agravada pela degradação ambiental, que, não sendo reconhecidos como
refugiados nas convenções internacionais, carregam o peso da sua vida
abandonada sem qualquer tutela normativa. Infelizmente, verifica-se uma
indiferença geral perante estas tragédias, que estão acontecendo agora mesmo em
diferentes partes do mundo. A falta de reacções diante destes dramas dos nossos
irmãos e irmãs é um sinal da perda do sentido de responsabilidade pelos nossos
semelhantes, sobre o qual se funda toda a sociedade civil.
26.
Muitos daqueles que detêm mais recursos e poder económico ou político parecem
concentrar-se sobretudo em mascarar os problemas ou ocultar os seus sintomas,
procurando apenas reduzir alguns impactos negativos de mudanças climáticas. Mas
muitos sintomas indicam que tais efeitos poderão ser cada vez piores, se
continuarmos com os modelos actuais de produção e consumo. Por isso, tornou-se
urgente e imperioso o desenvolvimento de políticas capazes de fazer com que,
nos próximos anos, a emissão de anidrido carbónico e outros gases altamente
poluentes se reduza drasticamente, por exemplo, substituindo os combustíveis
fósseis e desenvolvendo fontes de energia renovável. No mundo, é exíguo o nível
de acesso a energias limpas e renováveis. Mas ainda é necessário desenvolver
adequadas tecnologias de acumulação. Entretanto, nalguns países, registaram-se
avanços que começam a ser significativos, embora estejam longe de atingir uma
proporção importante. Houve também alguns investimentos em modalidades de
produção e transporte que consomem menos energia exigindo menor quantidade de
matérias-primas, bem como em modalidades de construção ou restruturação de
edifícios para se melhorar a sua eficiência energética. Mas estas práticas
promissoras estão longe de se tornar omnipresentes.
2. A questão da água
27.
Outros indicadores da situação actual têm a ver com o esgotamento dos recursos
naturais. É bem conhecida a impossibilidade de sustentar o nível actual de
consumo dos países mais desenvolvidos e dos sectores mais ricos da sociedade,
onde o hábito de desperdiçar e jogar fora atinge níveis inauditos. Já se
ultrapassaram certos limites máximos de exploração do planeta, sem termos
resolvido o problema da pobreza.
28.
A água potável e limpa constitui uma questão de primordial importância, porque
é indispensável para a vida humana e para sustentar os ecossistemas terrestres
e aquáticos. As fontes de água doce fornecem os sectores sanitários,
agro-pecuários e industriais. A disponibilidade de água manteve-se
relativamente constante durante muito tempo, mas agora, em muitos lugares, a
procura excede a oferta sustentável, com graves consequências a curto e longo
prazo. Grandes cidades, que dependem de importantes reservas hídricas, sofrem
períodos de carência do recurso, que, nos momentos críticos, nem sempre se
administra com uma gestão adequada e com imparcialidade. A pobreza da água
pública verifica-se especialmente na África, onde grandes sectores da população
não têm acesso a água potável segura, ou sofrem secas que tornam difícil a
produção de alimento. Nalguns países, há regiões com abundância de água,
enquanto outras sofrem de grave escassez.
29.
Um problema particularmente sério é o da qualidade da água disponível para os
pobres, que diariamente ceifa muitas vidas. Entre os pobres, são frequentes as
doenças relacionadas com a água, incluindo as causadas por microorganismos e
substâncias químicas. A diarreia e a cólera, devidas a serviços de higiene e reservas
de água inadequados, constituem um factor significativo de sofrimento e
mortalidade infantil. Em muitos lugares, os lençóis freáticos estão ameaçados
pela poluição produzida por algumas actividades extractivas, agrícolas e
industriais, sobretudo em países desprovidos de regulamentação e controles
suficientes. Não pensamos apenas nas descargas provenientes das fábricas; os
detergentes e produtos químicos que a população utiliza em muitas partes do
mundo continuam a ser derramados em rios, lagos e mares.
30. Enquanto a qualidade da água
disponível piora constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para se
privatizar este recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do
mercado. Na realidade, o acesso à água potável e segura é um direito
humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das
pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos.
Este mundo tem uma grave dívida social para com os pobres que não têm acesso à
água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicado na sua
dignidade inalienável. Esta dívida é parcialmente saldada com maiores
contribuições económicas para prover de água limpa e saneamento as populações
mais pobres. Entretanto nota-se um desperdício de água não só nos países
desenvolvidos, mas também naqueles em vias de desenvolvimento que possuem
grandes reservas. Isto mostra que o problema da água é, em parte, uma questão
educativa e cultural, porque não há consciência da gravidade destes comportamentos
num contexto de grande desigualdade.
31. Uma maior escassez de água
provocará o aumento do custo dos alimentos e de vários produtos que dependem do
seu uso. Alguns estudos assinalaram o risco de sofrer uma aguda escassez de
água dentro de poucas décadas, se não forem tomadas medidas urgentes. Os
impactos ambientais poderiam afectar milhares de milhões de pessoas, sendo
previsível que o controle da água por grandes empresas mundiais se transforme
numa das principais fontes de conflitos deste século.[23]
3. Perda de biodiversidade
32.
Os recursos da terra estão a ser depredados também por causa de formas imediatistas
de entender a economia e a actividade comercial e produtiva. A perda de
florestas e bosques implica simultaneamente a perda de espécies que poderiam
constituir, no futuro, recursos extremamente importantes não só para a
alimentação mas também para a cura de doenças e vários serviços. As diferentes
espécies contêm genes que podem ser recursos-chave para resolver, no futuro,
alguma necessidade humana ou regular algum problema ambiental.
33.
Entretanto não basta pensar nas diferentes espécies apenas como eventuais
«recursos» exploráveis, esquecendo que possuem um valor em si mesmas.
Anualmente, desaparecem milhares de espécies vegetais e animais, que já não
poderemos conhecer, que os nossos filhos não poderão ver, perdidas para sempre.
A grande maioria delas extingue-se por razões que têm a ver com alguma
actividade humana. Por nossa causa, milhares de espécies já não darão glória a
Deus com a sua existência, nem poderão comunicar-nos a sua própria mensagem.
Não temos direito de o fazer.
34.
Possivelmente perturba-nos saber da extinção dum mamífero ou duma ave, pela sua
maior visibilidade; mas, para o bom funcionamento dos ecossistemas, também são
necessários os fungos, as algas, os vermes, os pequenos insectos, os répteis e
a variedade inumerável de microorganismos. Algumas espécies pouco numerosas,
que habitualmente nos passam despercebidas, desempenham uma função censória
fundamental para estabelecer o equilíbrio dum lugar. É verdade que o ser humano
deve intervir quando um geosistema cai em estado crítico, mas hoje o nível de
intervenção humana numa realidade tão complexa como a natureza é tal, que os
desastres constantes causados pelo ser humano provocam uma nova intervenção
dele de modo que a actividade humana torna-se omnipresente, com todos os riscos
que isto implica. Normalmente cria-se um círculo vicioso, no qual a intervenção
humana, para resolver uma dificuldade, muitas vezes ainda agrava mais a
situação. Por exemplo, muitos pássaros e insectos, que desaparecem por causa
dos agro-tóxicos criados pela tecnologia, são úteis para a própria agricultura,
e o seu desaparecimento deverá ser compensado por outra intervenção tecnológica
que possivelmente trará novos efeitos nocivos. São louváveis e, às vezes,
admiráveis os esforços de cientistas e técnicos que procuram dar solução aos
problemas criados pelo ser humano. Mas, contemplando o mundo, damo-nos conta de
que este nível de intervenção humana, muitas vezes ao serviço da finança e do
consumismo, faz com que esta terra onde vivemos se torne realmente menos rica e
bela, cada vez mais limitada e cinzenta, enquanto ao mesmo tempo o
desenvolvimento da tecnologia e das ofertas de consumo continua a avançar sem
limites. Assim, parece que nos iludimos de poder substituir uma beleza
insuprível e irrecuperável por outra criada por nós.
35.
Quando se analisa o impacto ambiental de qualquer iniciativa económica,
costuma-se olhar para os seus efeitos no solo, na água e no ar, mas nem sempre
se inclui um estudo cuidadoso do impacto na biodiversidade, como se a perda de
algumas espécies ou de grupos animais ou vegetais fosse algo de pouca
relevância. As estradas, os novos cultivos, as reservas, as barragens e outras
construções vão tomando posse dos habitats e, por vezes, fragmentam-nos de tal
maneira que as populações de animais já não podem migrar nem mover-se
livremente, pelo que algumas espécies correm o risco de extinção. Existem
alternativas que, pelo menos, mitigam o impacto destas obras, como a criação de
corredores biológicos, mas são poucos os países em que se adverte este cuidado
e prevenção. Quando se explora comercialmente algumas espécies, nem sempre se
estuda a sua modalidade de crescimento para evitar a sua diminuição excessiva e
consequente desequilíbrio do ecossistema.
36.
O cuidado dos ecossistemas requer uma perspectiva que se estenda para além do
imediato, porque, quando se busca apenas um ganho económico rápido e fácil, já
ninguém se importa realmente com a sua preservação. Mas o custo dos danos
provocados pela negligência egoísta é muitíssimo maior do que o benefício
económico que se possa obter. No caso da perda ou dano grave dalgumas espécies,
fala-se de valores que excedem todo e qualquer cálculo. Por isso, podemos ser
testemunhas mudas de gravíssimas desigualdades, quando se pretende obter benefícios
significativos, fazendo pagar ao resto da humanidade, presente e futura, os
altíssimos custos da degradação ambiental.
37.
Alguns países fizeram progressos na conservação eficaz de certos lugares e
áreas – na terra e nos oceanos –, proibindo aí toda a intervenção humana que
possa modificar a sua fisionomia ou alterar a sua constituição original. No
cuidado da biodiversidade, os especialistas insistem na necessidade de prestar
uma especial atenção às áreas mais ricas em variedade de espécies, em espécies endémicas,
raras ou com menor grau de efectiva protecção. Há lugares que requerem um
cuidado particular pela sua enorme importância para o ecossistema mundial, ou
que constituem significativas reservas de água assegurando assim outras formas
de vida.
38. Mencionemos, por exemplo, os
pulmões do planeta repletos de biodiversidade que são a Amazónia e a bacia
fluvial do Congo, ou os grandes lençóis freáticos e os glaciares. A importância
destes lugares para o conjunto do planeta e para o futuro da humanidade não se
pode ignorar. Os ecossistemas das florestas tropicais possuem uma
biodiversidade de enorme complexidade, quase impossível de conhecer
completamente, mas quando estas florestas são queimadas ou derrubadas para
desenvolver cultivos, em poucos anos perdem-se inúmeras espécies, ou tais áreas
transformam-se em áridos desertos. Todavia, ao falar sobre estes lugares,
impõe-se um delicado equilíbrio, porque não é possível ignorar também os
enormes interesses económicos internacionais que, a pretexto de cuidar deles,
podem atentar contra as soberanias nacionais. Com efeito, há «propostas de
internacionalização da Amazónia que só servem aos interesses económicos das
corporações internacionais».[24] É louvável a tarefa de organismos
internacionais e organizações da sociedade civil que sensibilizam as populações
e colaboram de forma crítica, inclusive utilizando legítimos mecanismos de
pressão, para que cada governo cumpra o dever próprio e não-delegável de
preservar o meio ambiente e os recursos naturais do seu país, sem se vender a
espúrios interesses locais ou internacionais.
39.
Habitualmente também não se faz objecto de adequada análise a substituição da
flora silvestre por áreas florestais com árvores, que geralmente são
monoculturas. É que pode afectar gravemente uma biodiversidade que não é
albergada pelas novas espécies que se implantam. Também as zonas húmidas, que
são transformadas em terrenos agrícolas, perdem a enorme biodiversidade que
abrigavam. É preocupante, nalgumas áreas costeiras, o desaparecimento dos
ecossistemas constituídos por manguezais.
40.
Os oceanos contêm não só a maior parte da água do planeta, mas também a maior
parte da vasta variedade dos seres vivos, muitos deles ainda desconhecidos para
nós e ameaçados por diversas causas. Além disso, a vida nos rios, lagos, mares
e oceanos, que nutre grande parte da população mundial, é afectada pela extracção
descontrolada dos recursos ictíicos, que provoca drásticas diminuições dalgumas
espécies. E no entanto continuam a desenvolver-se modalidades selectivas de
pesca, que descartam grande parte das espécies apanhadas. Particularmente
ameaçados estão organismos marinhos que não temos em consideração, como certas
formas de plâncton que constituem um componente muito importante da cadeia
alimentar marinha e de que dependem, em última instância, espécies que se
utilizam para a alimentação humana.
41. Passando aos mares tropicais e
subtropicais, encontramos os recifes de coral, que equivalem às grandes
florestas da terra firme, porque abrigam cerca de um milhão de espécies,
incluindo peixes, caranguejos, moluscos, esponjas, algas e outras. Hoje, muitos
dos recifes de coral no mundo já são estéreis ou encontram-se num estado
contínuo de declínio: «Quem transformou o maravilhoso mundo marinho em
cemitérios subaquáticos despojados de vida e de cor?»[25] Este fenómeno deve-se, em grande
parte, à poluição que chega ao mar resultante do desflorestamento, das
monoculturas agrícolas, das descargas industriais e de métodos de pesca
destrutivos, nomeadamente os que utilizam cianeto e dinamite. É agravado pelo
aumento da temperatura dos oceanos. Tudo isso nos ajuda a compreender como
qualquer acção sobre a natureza pode ter consequências que não advertimos à
primeira vista e como certas formas de exploração de recursos se obtêm à custa
duma degradação que acaba por chegar até ao fundo dos oceanos.
42.
É preciso investir muito mais na pesquisa para se entender melhor o
comportamento dos ecossistemas e analisar adequadamente as diferentes variáveis
de impacto de qualquer modificação importante do meio ambiente. Visto que todas
as criaturas estão interligadas, deve ser reconhecido com carinho e admiração o
valor de cada uma, e todos nós, seres criados, precisamos uns dos outros. Cada
território detém uma parte de responsabilidade no cuidado desta família, pelo
que deve fazer um inventário cuidadoso das espécies que alberga a fim de
desenvolver programas e estratégias de protecção, cuidando com particular
solicitude das espécies em vias de extinção.
4. Deterioração da qualidade de vida
humana e degradação social
43.
Tendo em conta que o ser humano também é uma criatura deste mundo, que tem
direito a viver e ser feliz e, além disso, possui uma dignidade especial, não
podemos deixar de considerar os efeitos da degradação ambiental, do modelo
actual de desenvolvimento e da cultura do descarte sobre a vida das pessoas.
44.
Nota-se hoje, por exemplo, o crescimento desmedido e descontrolado de muitas
cidades que se tornaram pouco saudáveis para viver, devido não só à poluição
proveniente de emissões tóxicas mas também ao caos urbano, aos problemas de
transporte e à poluição visiva e acústica. Muitas cidades são grandes
estruturas que não funcionam, gastando energia e água em excesso. Há bairros
que, embora construídos recentemente, apresentam-se congestionados e
desordenados, sem espaços verdes suficientes. Não é conveniente para os
habitantes deste planeta viver cada vez mais submersos de cimento, asfalto,
vidro e metais, privados do contacto físico com a natureza.
45.
Nalguns lugares, rurais e urbanos, a privatização dos espaços tornou difícil o
acesso dos cidadãos a áreas de especial beleza; noutros, criaram-se áreas
residenciais «ecológicas» postas à disposição só de poucos, procurando-se evitar
que outros entrem a perturbar uma tranquilidade artificial. Muitas vezes
encontra-se uma cidade bela e cheia de espaços verdes e bem cuidados nalgumas
áreas «seguras», mas não em áreas menos visíveis, onde vivem os descartados da
sociedade.
46.
Entre os componentes sociais da mudança global, incluem-se os efeitos laborais
dalgumas inovações tecnológicas, a exclusão social, a desigualdade no
fornecimento e consumo da energia e doutros serviços, a fragmentação social, o
aumento da violência e o aparecimento de novas formas de agressividade social,
o narcotráfico e o consumo crescente de drogas entre os mais jovens, a perda de
identidade. São alguns sinais, entre outros, que mostram como o crescimento nos
últimos dois séculos não significou, em todos os seus aspectos, um verdadeiro
progresso integral e uma melhoria da qualidade de vida. Alguns destes sinais
são ao mesmo tempo sintomas duma verdadeira degradação social, duma silenciosa
ruptura dos vínculos de integração e comunhão social.
47.
A isto vêm juntar-se as dinâmicas dos mass-media e do mundo digital, que,
quando se tornam omnipresentes, não favorecem o desenvolvimento duma capacidade
de viver com sabedoria, pensar em profundidade, amar com generosidade. Neste
contexto, os grandes sábios do passado correriam o risco de ver sufocada a sua
sabedoria no meio do ruído dispersivo da informação. Isto exige de nós um
esforço para que esses meios se traduzam num novo desenvolvimento cultural da
humanidade, e não numa deterioração da sua riqueza mais profunda. A verdadeira
sabedoria, fruto da reflexão, do diálogo e do encontro generoso entre as
pessoas, não se adquire com uma mera acumulação de dados, que, numa espécie de
poluição mental, acabam por saturar e confundir. Ao mesmo tempo tendem a
substituir as relações reais com os outros, com todos os desafios que implicam,
por um tipo de comunicação mediada pela internet. Isto permite seleccionar ou
eliminar a nosso arbítrio as relações e, deste modo, frequentemente gera-se um
novo tipo de emoções artificiais, que têm a ver mais com dispositivos e
monitores do que com as pessoas e a natureza. Os meios actuais permitem-nos
comunicar e partilhar conhecimentos e afectos. Mas, às vezes, também nos
impedem de tomar contacto directo com a angústia, a trepidação, a alegria do
outro e com a complexidade da sua experiência pessoal. Por isso, não deveria
surpreender-nos o facto de, a par da oferta sufocante destes produtos, ir
crescendo uma profunda e melancólica insatisfação nas relações interpessoais ou
um nocivo isolamento.
5. Desigualdade planetária
48. O ambiente humano e o ambiente
natural degradam-se em conjunto; e não podemos enfrentar adequadamente a
degradação ambiental, se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a
degradação humana e social. De facto, a deterioração do meio ambiente e a da
sociedade afectam de modo especial os mais frágeis do planeta: «Tanto a
experiência comum da vida quotidiana como a investigação científica demonstram
que os efeitos mais graves de todas as agressões ambientais recaem sobre as
pessoas mais pobres».[26] Por exemplo, o esgotamento das
reservas ictíicas prejudica especialmente as pessoas que vivem da pesca
artesanal e não possuem qualquer maneira de a substituir, a poluição da água
afecta particularmente os mais pobres que não têm possibilidades de comprar
água engarrafada, e a elevação do nível do mar afecta principalmente as populações
costeiras mais pobres que não têm para onde se transferir. O impacto dos
desequilíbrios actuais manifesta-se também na morte prematura de muitos pobres,
nos conflitos gerados pela falta de recursos e em muitos outros problemas que
não têm espaço suficiente nas agendas mundiais.[27]
49. Gostaria de assinalar que muitas
vezes falta uma consciência clara dos problemas que afectam particularmente os
excluídos. Estes são a maioria do planeta, milhares de milhões de pessoas. Hoje
são mencionados nos debates políticos e económicos internacionais, mas com
frequência parece que os seus problemas se coloquem como um apêndice, como uma
questão que se acrescenta quase por obrigação ou perifericamente, quando não
são considerados meros danos colaterais. Com efeito, na hora da implementação
concreta, permanecem frequentemente no último lugar. Isto deve-se, em parte, ao
facto de que muitos profissionais, formadores de opinião, meios de comunicação
e centros de poder estão localizados longe deles, em áreas urbanas isoladas,
sem ter contacto directo com os seus problemas. Vivem e reflectem a partir da
comodidade dum desenvolvimento e duma qualidade de vida que não está ao alcance
da maioria da população mundial. Esta falta de contacto físico e de encontro,
às vezes favorecida pela fragmentação das nossas cidades, ajuda a cauterizar a
consciência e a ignorar parte da realidade em análises tendenciosas. Isto, às
vezes, coexiste com um discurso «verde». Mas, hoje, não podemos deixar de
reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma
abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente,
para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres.
50. Em vez de resolver os problemas
dos pobres e pensar num mundo diferente, alguns limitam-se a propor uma redução
da natalidade. Não faltam pressões internacionais sobre os países em vias de
desenvolvimento, que condicionam as ajudas económicas a determinadas políticas
de «saúde reprodutiva». Mas, «se é verdade que a desigual distribuição da
população e dos recursos disponíveis cria obstáculos ao desenvolvimento e ao
uso sustentável do ambiente, deve-se reconhecer que o crescimento demográfico é
plenamente compatível com um desenvolvimento integral e solidário».[28] Culpar o incremento demográfico em
vez do consumismo exacerbado e selectivo de alguns é uma forma de não enfrentar
os problemas. Pretende-se, assim, legitimar o modelo distributivo actual, no
qual uma minoria se julga com o direito de consumir numa proporção que seria
impossível generalizar, porque o planeta não poderia sequer conter os resíduos
de tal consumo. Além disso, sabemos que se desperdiça aproximadamente um terço
dos alimentos produzidos, e «a comida que se desperdiça é como se fosse roubada
da mesa do pobre».[29] Em todo o caso, é verdade que
devemos prestar atenção ao desequilíbrio na distribuição da população pelo
território, tanto a nível nacional como a nível mundial, porque o aumento do
consumo levaria a situações regionais complexas pelas combinações de problemas
ligados à poluição ambiental, ao transporte, ao tratamento de resíduos, à perda
de recursos, à qualidade de vida.
51. A desigualdade não afecta apenas
os indivíduos mas países inteiros, e obriga a pensar numa ética das relações
internacionais. Com efeito, há uma verdadeira «dívida ecológica»,
particularmente entre o Norte e o Sul, ligada a desequilíbrios comerciais com
consequências no âmbito ecológico e com o uso desproporcionado dos recursos
naturais efectuado historicamente por alguns países. As exportações de algumas
matérias-primas para satisfazer os mercados no Norte industrializado produziram
danos locais, como, por exemplo, a contaminação com mercúrio na extracção
minerária do ouro ou com o dióxido de enxofre na do cobre. De modo especial é
preciso calcular o espaço ambiental de todo o planeta usado para depositar
resíduos gasosos que se foram acumulando ao longo de dois séculos e criaram uma
situação que agora afecta todos os países do mundo. O aquecimento causado pelo
enorme consumo de alguns países ricos tem repercussões nos lugares mais pobres
da terra, especialmente na África, onde o aumento da temperatura, juntamente
com a seca, tem efeitos desastrosos no rendimento das cultivações. A isto
acrescentam-se os danos causados pela exportação de resíduos sólidos e líquidos
tóxicos para os países em vias de desenvolvimento e pela actividade poluente de
empresas que fazem nos países menos desenvolvidos aquilo que não podem fazer
nos países que lhes dão o capital: «Constatamos frequentemente que as empresas
que assim procedem são multinacionais, que fazem aqui o que não lhes é
permitido em países desenvolvidos ou do chamado primeiro mundo. Geralmente,
quando cessam as suas actividades e se retiram, deixam grandes danos humanos e
ambientais, como o desemprego, aldeias sem vida, esgotamento dalgumas reservas
naturais, desflorestamento, empobrecimento da agricultura e pecuária local,
crateras, colinas devastadas, rios poluídos e qualquer obra social que já não
se pode sustentar».[30]
52. A dívida externa dos países
pobres transformou-se num instrumento de controle, mas não se dá o mesmo com a
dívida ecológica. De várias maneiras os povos em vias de desenvolvimento, onde
se encontram as reservas mais importantes da biosfera, continuam a alimentar o
progresso dos países mais ricos à custa do seu presente e do seu futuro. A
terra dos pobres do Sul é rica e pouco contaminada, mas o acesso à propriedade
de bens e recursos para satisfazerem as suas carências vitais é-lhes vedado por
um sistema de relações comerciais e de propriedade estruturalmente perverso. É
necessário que os países desenvolvidos contribuam para resolver esta dívida,
limitando significativamente o consumo de energia não renovável e fornecendo
recursos aos países mais necessitados para promover políticas e programas de
desenvolvimento sustentável. As regiões e os países mais pobres têm menos
possibilidade de adoptar novos modelos de redução do impacto ambiental, porque
não têm a preparação para desenvolver os processos necessários nem podem cobrir
os seus custos. Por isso, deve-se manter claramente a consciência de que a
mudança climática tem responsabilidades diversificadas e, como
disseram os bispos dos Estados Unidos, é oportuno concentrar-se «especialmente
sobre as necessidades dos pobres, fracos e vulneráveis, num debate muitas vezes
dominado pelos interesses mais poderosos».[31] É preciso revigorar a consciência
de que somos uma única família humana. Não há fronteiras nem barreiras
políticas ou sociais que permitam isolar-nos e, por isso mesmo, também não há
espaço para a globalização da indiferença.
6. A fraqueza das reacções
53.
Estas situações provocam os gemidos da irmã terra, que se unem aos gemidos dos
abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo. Nunca
maltratámos e ferimos a nossa casa comum como nos últimos dois séculos. Mas
somos chamados a tornar-nos os instrumentos de Deus Pai para que o nosso
planeta seja o que Ele sonhou ao criá-lo e corresponda ao seu projecto de paz,
beleza e plenitude. O problema é que não dispomos ainda da cultura necessária
para enfrentar esta crise e há necessidade de construir lideranças que tracem
caminhos, procurando dar resposta às necessidades das gerações actuais, todos
incluídos, sem prejudicar as gerações futuras. Torna-se indispensável criar um
sistema normativo que inclua limites invioláveis e assegure a protecção dos
ecossistemas, antes que as novas formas de poder derivadas do paradigma
tecno-económico acabem por arrasá-los não só com a política, mas também com a
liberdade e a justiça.
54. Preocupa a fraqueza da reacção
política internacional. A submissão da política à tecnologia e à finança
demonstra-se na falência das cimeiras mundiais sobre o meio ambiente. Há
demasiados interesses particulares e, com muita facilidade, o interesse
económico chega a prevalecer sobre o bem comum e manipular a informação para
não ver afectados os seus projectos. Nesta linha, o Documento de
Aparecida pede que, «nas intervenções sobre os recursos naturais, não
predominem os interesses de grupos económicos que arrasam irracionalmente as
fontes da vida».[32] A aliança entre economia e
tecnologia acaba por deixar de fora tudo o que não faz parte dos seus
interesses imediatos. Deste modo, poder-se-á esperar apenas algumas
proclamações superficiais, acções filantrópicas isoladas e ainda esforços por
mostrar sensibilidade para com o meio ambiente, enquanto, na realidade,
qualquer tentativa das organizações sociais para alterar as coisas será vista
como um distúrbio provocado por sonhadores românticos ou como um obstáculo a
superar.
55.
Pouco a pouco alguns países podem mostrar progressos significativos, o
desenvolvimento de controles mais eficientes e uma luta mais sincera contra a
corrupção. Cresceu a sensibilidade ecológica das populações, mas é ainda
insuficiente para mudar os hábitos nocivos de consumo, que não parecem
diminuir; antes, expandem-se e desenvolvem-se. É o que acontece – só para dar
um exemplo simples – com o crescente aumento do uso e intensidade dos
condicionadores de ar: os mercados, apostando num ganho imediato, estimulam
ainda mais a procura. Se alguém observasse de fora a sociedade planetária,
maravilhar-se-ia com tal comportamento que às vezes parece suicida.
56. Entretanto os poderes económicos
continuam a justificar o sistema mundial actual, onde predomina uma especulação
e uma busca de receitas financeiras que tendem a ignorar todo o contexto e os
efeitos sobre a dignidade humana e sobre o meio ambiente. Assim se manifesta
como estão intimamente ligadas a degradação ambiental e a degradação humana e
ética. Muitos dirão que não têm consciência de realizar acções imorais, porque
a constante distracção nos tira a coragem de advertir a realidade dum mundo
limitado e finito. Por isso, hoje, «qualquer realidade que seja frágil, como o
meio ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado divinizado,
transformados em regra absoluta».[33]
57. É previsível que, perante o
esgotamento de alguns recursos, se vá criando um cenário favorável para novas
guerras, disfarçadas sob nobres reivindicações. A guerra causa sempre danos
graves ao meio ambiente e à riqueza cultural dos povos, e os riscos avolumam-se
quando se pensa na energia nuclear e nas armas biológicas. Com efeito, «não
obstante haver acordos internacionais que proíbem a guerra química,
bacteriológica e biológica, subsiste o facto de continuarem nos laboratórios as
pesquisas para o desenvolvimento de novas armas ofensivas, capazes de alterar
os equilíbrios naturais».[34] Exige-se da política uma maior
atenção para prevenir e resolver as causas que podem dar origem a novos
conflitos. Entretanto o poder, ligado com a finança, é o que maior resistência
põe a tal esforço, e os projectos políticos carecem muitas vezes de amplitude
de horizonte. Para que se quer preservar hoje um poder que será recordado pela
sua incapacidade de intervir quando era urgente e necessário fazê-lo?
58.
Nalguns países, há exemplos positivos de resultados na melhoria do ambiente,
tais como o saneamento de alguns rios que foram poluídos durante muitas
décadas, a recuperação de florestas nativas, o embelezamento de paisagens com
obras de saneamento ambiental, projectos de edifícios de grande valor estético,
progressos na produção de energia limpa, na melhoria dos transportes públicos.
Estas acções não resolvem os problemas globais, mas confirmam que o ser humano
ainda é capaz de intervir de forma positiva. Como foi criado para amar, no meio
dos seus limites germinam inevitavelmente gestos de generosidade, solidariedade
e desvelo.
59.
Ao mesmo tempo cresce uma ecologia superficial ou aparente que consolida um
certo torpor e uma alegre irresponsabilidade. Como frequentemente acontece em
épocas de crises profundas, que exigem decisões corajosas, somos tentados a
pensar que aquilo que está a acontecer não é verdade. Se nos detivermos na
superfície, para além de alguns sinais visíveis de poluição e degradação,
parece que as coisas não estejam assim tão graves e que o planeta poderia
subsistir ainda por muito tempo nas condições actuais. Este comportamento
evasivo serve-nos para mantermos os nossos estilos de vida, de produção e
consumo. É a forma como o ser humano se organiza para alimentar todos os vícios
autodestrutivos: tenta não os ver, luta para não os reconhecer, adia as
decisões importantes, age como se nada tivesse acontecido.
7. Diversidade de opiniões
60.
Finalmente reconhecemos, a propósito da situação e das possíveis soluções, que
se desenvolveram diferentes perspectivas e linhas de pensamento. Num dos
extremos, alguns defendem a todo o custo o mito do progresso, afirmando que os
problemas ecológicos resolver-se-ão simplesmente com novas aplicações técnicas,
sem considerações éticas nem mudanças de fundo. No extremo oposto, outros
pensam que o ser humano, com qualquer uma das suas intervenções, só pode
ameaçar e comprometer o ecossistema mundial, pelo que convém reduzir a sua
presença no planeta e impedir-lhe todo o tipo de intervenção. Entre estes
extremos, a reflexão deveria identificar possíveis cenários futuros, porque não
existe só um caminho de solução. Isto deixaria espaço para uma variedade de
contribuições que poderiam entrar em diálogo a fim de se chegar a respostas
abrangentes.
61. Sobre muitas questões concretas,
a Igreja não tem motivo para propor uma palavra definitiva e entende que deve
escutar e promover o debate honesto entre os cientistas, respeitando a
diversidade de opiniões. Basta, porém, olhar a realidade com sinceridade, para
ver que há uma grande deterioração da nossa casa comum. A esperança convida-nos
a reconhecer que sempre há uma saída, sempre podemos mudar de rumo, sempre
podemos fazer alguma coisa para resolver os problemas. Todavia parece notar-se
sintomas dum ponto de ruptura, por causa da alta velocidade das mudanças e da
degradação, que se manifestam tanto em catástrofes naturais regionais como em
crises sociais ou mesmo financeiras, uma vez que os problemas do mundo não se
podem analisar nem explicar de forma isolada. Há regiões que já se encontram
particularmente em risco e, prescindindo de qualquer previsão catastrófica, o
certo é que o actual sistema mundial é insustentável a partir de vários pontos
de vista, porque deixamos de pensar nas finalidades da acção humana: «Se o
olhar percorre as regiões do nosso planeta, apercebemo-nos depressa de que a
humanidade frustrou a expectativa divina».[35]
CAPÍTULO
II
O EVANGELHO DA CRIAÇÃO
62.
Por que motivo incluir, neste documento dirigido a todas as pessoas de boa
vontade, um capítulo referido às convicções de fé? Não ignoro que alguns, no
campo da política e do pensamento, rejeitam decididamente a ideia de um Criador
ou consideram-na irrelevante, chegando ao ponto de relegar para o reino do
irracional a riqueza que as religiões possam oferecer para uma ecologia
integral e o pleno desenvolvimento do género humano; outras vezes, supõe-se que
elas constituam uma subcultura, que se deve simplesmente tolerar. Todavia a
ciência e a religião, que fornecem diferentes abordagens da realidade, podem
entrar num diálogo intenso e frutuoso para ambas.
1. A luz que a fé oferece
63.
Se tivermos presente a complexidade da crise ecológica e as suas múltiplas
causas, deveremos reconhecer que as soluções não podem vir duma única maneira
de interpretar e transformar a realidade. É necessário recorrer também às diversas
riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à vida interior e à
espiritualidade. Se quisermos, de verdade, construir uma ecologia que nos
permita reparar tudo o que temos destruído, então nenhum ramo das ciências e
nenhuma forma de sabedoria pode ser transcurada, nem sequer a sabedoria
religiosa com a sua linguagem própria. Além disso, a Igreja Católica está
aberta ao diálogo com o pensamento filosófico, o que lhe permite produzir
várias sínteses entre fé e razão. No que diz respeito às questões sociais,
pode-se constatar isto mesmo no desenvolvimento da doutrina social da Igreja,
chamada a enriquecer-se cada vez mais a partir dos novos desafios.
64. Por outro lado, embora esta
encíclica se abra a um diálogo com todos para, juntos, buscarmos caminhos de
libertação, quero mostrar desde o início como as convicções da fé oferecem aos
cristãos – e, em parte, também a outros crentes – motivações altas para cuidar
da natureza e dos irmãos e irmãs mais frágeis. Se pelo simples facto de ser
humanas, as pessoas se sentem movidas a cuidar do ambiente de que fazem parte,
«os cristãos, em particular, advertem que a sua tarefa no seio da criação e os
seus deveres em relação à natureza e ao Criador fazem parte da sua fé».[36] Por isso é bom, para a humanidade e
para o mundo, que nós, crentes, conheçamos melhor os compromissos ecológicos
que brotam das nossas convicções.
2. A sabedoria das narrações bíblicas
65. Sem repropor aqui toda a teologia
da Criação, queremos saber o que nos dizem as grandes narrações bíblicas sobre
a relação do ser humano com o mundo. Na primeira narração da obra criadora, no
livro do Génesis, o plano de Deus inclui a criação da humanidade. Depois da
criação do homem e da mulher, diz-se que «Deus, vendo a sua obra, considerou-a muito
boa» (Gn 1, 31). A Bíblia ensina que cada ser humano é criado
por amor, feito à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26).
Esta afirmação mostra-nos a imensa dignidade de cada pessoa humana, que «não é
somente alguma coisa, mas alguém. É capaz de se conhecer, de se possuir e de
livremente se dar e entrar em comunhão com outras pessoas».[37] São João Paulo II recordou
que o amor muito especial que o Criador tem por cada ser humano «confere-lhe
uma dignidade infinita».[38] Todos aqueles que estão empenhados
na defesa da dignidade das pessoas podem encontrar, na fé cristã, as razões
mais profundas para tal compromisso. Como é maravilhosa a certeza de que a vida
de cada pessoa não se perde num caos desesperador, num mundo regido pelo puro
acaso ou por ciclos que se repetem sem sentido! O Criador pode dizer a cada um
de nós: «Antes de te haver formado no ventre materno, Eu já te conhecia» (Jr 1,
5). Fomos concebidos no coração de Deus e, por isso, «cada um de nós é o fruto
de um pensamento de Deus. Cada um de nós é querido, cada um de nós é amado,
cada um é necessário».[39]
66. As narrações da criação no livro
do Génesis contêm, na sua linguagem simbólica e narrativa, ensinamentos
profundos sobre a existência humana e a sua realidade histórica. Estas
narrações sugerem que a existência humana se baseia sobre três relações
fundamentais intimamente ligadas: as relações com Deus, com o próximo e com a
terra. Segundo a Bíblia, estas três relações vitais romperam-se não só
exteriormente, mas também dentro de nós. Esta ruptura é o pecado. A harmonia
entre o Criador, a humanidade e toda a criação foi destruída por termos
pretendido ocupar o lugar de Deus, recusando reconhecer-nos como criaturas
limitadas. Este facto distorceu também a natureza do mandato de «dominar» a
terra (cf. Gn 1, 28) e de a «cultivar e guardar» (cf. Gn 2,
15). Como resultado, a relação originariamente harmoniosa entre o ser humano e
a natureza transformou-se num conflito (cf. Gn 3, 17-19). Por
isso, é significativo que a harmonia vivida por São Francisco de Assis com
todas as criaturas tenha sido interpretada como uma sanação daquela ruptura.
Dizia São Boaventura que, através da reconciliação universal com todas as
criaturas, Francisco voltara de alguma forma ao estado de inocência original.[40] Longe deste modelo, o pecado
manifesta-se hoje, com toda a sua força de destruição, nas guerras, nas várias
formas de violência e abuso, no abandono dos mais frágeis, nos ataques contra a
natureza.
67. Não somos Deus. A terra existe antes
de nós e foi-nos dada. Isto permite responder a uma acusação lançada contra o
pensamento judaico-cristão: foi dito que a narração do Génesis, que convida a
«dominar» a terra (cf. Gn 1, 28), favoreceria a exploração
selvagem da natureza, apresentando uma imagem do ser humano como dominador e
devastador. Mas esta não é uma interpretação correcta da Bíblia, como a entende
a Igreja. Se é verdade que nós, cristãos, algumas vezes interpretámos de forma
incorrecta as Escrituras, hoje devemos decididamente rejeitar que, do facto de
ser criados à imagem de Deus e do mandato de dominar a terra, se deduza um
domínio absoluto sobre as outras criaturas. É importante ler os textos bíblicos
no seu contexto, com uma justa hermenêutica, e lembrar que nos convidam a «cultivar
e guardar» o jardim do mundo (cf. Gn 2, 15). Enquanto
«cultivar» quer dizer lavrar ou trabalhar um terreno, «guardar» significa
proteger, cuidar, preservar, velar. Isto implica uma relação de reciprocidade
responsável entre o ser humano e a natureza. Cada comunidade pode tomar da
bondade da terra aquilo de que necessita para a sua sobrevivência, mas tem
também o dever de a proteger e garantir a continuidade da sua fertilidade para
as gerações futuras. Em última análise, «ao Senhor pertence a terra» (Sl 24/23,
1), a Ele pertence «a terra e tudo o que nela existe» (Dt 10, 14).
Por isso, Deus proíbe-nos toda a pretensão de posse absoluta: «Nenhuma terra
será vendida definitivamente, porque a terra pertence-Me, e vós sois apenas
estrangeiros e meus hóspedes» (Lv 25, 23).
68. Esta responsabilidade perante uma
terra que é de Deus implica que o ser humano, dotado de inteligência, respeite
as leis da natureza e os delicados equilíbrios entre os seres deste mundo,
porque «Ele deu uma ordem e tudo foi criado; Ele fixou tudo pelos séculos sem
fim e estabeleceu leis a que não se pode fugir!» (Sl 148, 5b-6).
Consequentemente, a legislação bíblica detém-se a propor ao ser humano várias
normas relativas não só às outras pessoas, mas também aos restantes seres
vivos: «Se vires o jumento do teu irmão ou o seu boi caídos no caminho, não te
desvies deles, mas ajuda-os a levantarem-se. (…) Se encontrares no caminho, em
cima de uma árvore ou no chão, um ninho de pássaros com filhotes, ou ovos
cobertos pela mãe, não apanharás a mãe com a ninhada» (Dt22, 4.6). Nesta
linha, o descanso do sétimo dia não é proposto só para o ser humano, mas «para
que descansem o teu boi e o teu jumento» (Ex 23, 12). Assim nos
damos conta de que a Bíblia não dá lugar a um antropocentrismo despótico, que
se desinteressa das outras criaturas.
69. Ao mesmo tempo que podemos fazer
um uso responsável das coisas, somos chamados a reconhecer que os outros seres
vivos têm um valor próprio diante de Deus e, «pelo simples facto de existirem,
eles O bendizem e Lhe dão glória»[41], porque «o Senhor Se alegra em suas
obras» (Sl 104/103, 31). Precisamente pela sua dignidade única e
por ser dotado de inteligência, o ser humano é chamado a respeitar a criação
com as suas leis internas, já que «o Senhor fundou a terra com sabedoria» (Pr 3,
19). Hoje, a Igreja não diz, de forma simplicista, que as outras criaturas
estão totalmente subordinadas ao bem do ser humano, como se não tivessem um
valor em si mesmas e fosse possível dispor delas à nossa vontade; mas ensina –
como fizeram os bispos da Alemanha – que, nas outras criaturas, «se poderia
falar da prioridade do ser sobre o ser úteis».[42] O Catecismo põe em
questão, de forma muito directa e insistente, um antropocentrismo desordenado:
«Cada criatura possui a sua bondade e perfeição próprias. (…) As diferentes
criaturas, queridas pelo seu próprio ser, reflectem, cada qual a seu modo, uma
centelha da sabedoria e da bondade infinitas de Deus. É por isso que o homem
deve respeitar a bondade própria de cada criatura, para evitar o uso
desordenado das coisas».[43]
70. Na narração de Caim e Abel, vemos
que a inveja levou Caim a cometer a injustiça extrema contra o seu irmão. Isto,
por sua vez, provocou uma ruptura da relação entre Caim e Deus e entre Caim e a
terra, da qual foi exilado. Esta passagem aparece sintetizada no dramático
colóquio de Deus com Caim. Deus pergunta: «Onde está o teu irmão Abel?» Caim
responde que não sabe, e Deus insiste com ele: «Que fizeste? A voz do sangue do
teu irmão clama da terra até Mim. De futuro, serás amaldiçoado pela terra (…).
Serás vagabundo e fugitivo sobre a terra» (Gn4, 9-12). O descuido no
compromisso de cultivar e manter um correcto relacionamento com o próximo,
relativamente a quem sou devedor da minha solicitude e custódia, destrói o
relacionamento interior comigo mesmo, com os outros, com Deus e com a terra.
Quando todas estas relações são negligenciadas, quando a justiça deixa de
habitar na terra, a Bíblia diz-nos que toda a vida está em perigo. Assim no-lo
ensina a narração de Noé, quando Deus ameaça acabar com a humanidade pela sua
persistente incapacidade de viver à altura das exigências da justiça e da paz:
«O fim de toda a humanidade chegou diante de Mim, pois ela encheu a terra de
violência» (Gn6, 13). Nestas narrações tão antigas, ricas de profundo
simbolismo, já estava contida a convicção actual de que tudo está
inter-relacionado e o cuidado autêntico da nossa própria vida e das nossas
relações com a natureza é inseparável da fraternidade, da justiça e da
fidelidade aos outros.
71. Embora Deus reconhecesse que «a
maldade dos homens era grande na terra» (Gn 6, 5), «arrependendo-Se
de ter criado o homem sobre a terra» (Gn 6, 6), Ele decidiu abrir
um caminho de salvação através de Noé, que ainda se mantinha íntegro e justo.
Assim deu à humanidade a possibilidade de um novo início. Basta um homem bom
para haver esperança! A tradição bíblica estabelece claramente que esta
reabilitação implica a redescoberta e o respeito dos ritmos inscritos na
natureza pela mão do Criador. Isto está patente, por exemplo, na lei do Shabbath.
No sétimo dia, Deus descansou de todas as suas obras. Deus ordenou a Israel que
cada sétimo dia devia ser celebrado como um dia de descanso, um Shabbath (cf. Gn 2,
2-3; Ex 16, 23; 20, 10). Além disso, de sete em sete anos,
instaurou-se também um ano sabático para Israel e a sua terra (cf. Lv 25,
1-4), durante o qual se dava descanso completo à terra, não se semeava e só se
colhia o indispensável para sobreviver e oferecer hospitalidade (cf. Lv 25,
4-6). Por fim, passadas sete semanas de anos, ou seja quarenta e nove anos,
celebrava-se o jubileu, um ano de perdão universal, «proclamando na vossa terra
a liberdade de todos os que a habitam» (Lv 25, 10). O
desenvolvimento desta legislação procurou assegurar o equilíbrio e a equidade
nas relações do ser humano com os outros e com a terra onde vivia e trabalhava.
Mas, ao mesmo tempo, era um reconhecimento de que a dádiva da terra com os seus
frutos pertence a todo o povo. Aqueles que cultivavam e guardavam o território
deviam partilhar os seus frutos, especialmente com os pobres, as viúvas, os
órfãos e os estrangeiros: «Quando procederes à ceifa das vossas terras, não
ceifarás as espigas até à extremidade do campo, e não apanharás as espigas
caídas. Não rebuscarás também a tua vinha, e não apanharás os bagos caídos.
Deixá-los-ás para o pobre e para o estrangeiro» (Lv 19, 9-10).
72. Os Salmos convidam,
frequentemente, o ser humano a louvar a Deus criador: «Estendeu a terra sobre
as águas, porque o seu amor é eterno» (Sl 136/135, 6). E convidam
também as outras criaturas a louvá-Lo: «Louvai-O, sol e lua; louvai-O, estrelas
luminosas! Louvai-O, alturas dos céus e águas que estais acima dos céus! Louvem
todos o nome do Senhor, porque Ele deu uma ordem e tudo foi criado» (Sl 148,
3-5). Existimos não só pelo poder de Deus, mas também na sua presença e
companhia. Por isso O adoramos.
73. Os escritos dos profetas convidam
a recuperar forças, nos momentos difíceis, contemplando a Deus poderoso que
criou o universo. O poder infinito de Deus não nos leva a escapar da sua
ternura paterna, porque n’Ele se conjugam o carinho e a força. Na verdade, toda
a sã espiritualidade implica simultaneamente acolher o amor divino e adorar,
com confiança, o Senhor pelo seu poder infinito. Na Bíblia, o Deus que liberta
e salva é o mesmo que criou o universo, e estes dois modos de agir divino estão
íntima e inseparavelmente ligados: «Ah! Senhor Deus, foste Tu que fizeste o céu
e a terra com o teu grande poder e o teu braço estendido! Para Ti, nada é
impossível! (…) Tu fizeste sair do Egipto o teu povo, Israel, com prodígios e
milagres» (Jr 32, 17.21). «O Senhor é um Deus eterno, que criou os
confins da terra. Não se cansa nem perde as forças. É insondável a sua
sabedoria. Ele dá forças ao cansado e enche de vigor o fraco» (Is 40,
28b-29).
74. A experiência do cativeiro em Babilónia
gerou uma crise espiritual que levou a um aprofundamento da fé em Deus,
explicitando a sua omnipotência criadora, para animar o povo a recuperar a
esperança no meio da sua situação infeliz. Séculos mais tarde, noutro momento
de prova e perseguição, quando o Império Romano procurou impor um domínio
absoluto, os fiéis voltaram a encontrar consolação e esperança aumentando a sua
confiança em Deus omnipotente, e cantavam: «Grandes e admiráveis são as tuas
obras, Senhor Deus todo-poderoso! Justos e verdadeiros são os teus caminhos!» (Ap 15,
3). Se Deus pôde criar o universo a partir do nada, também pode intervir neste
mundo e vencer qualquer forma de mal. Por isso, a injustiça não é invencível.
75.
Não podemos defender uma espiritualidade que esqueça Deus todo-poderoso e
criador. Neste caso, acabaríamos por adorar outros poderes do mundo, ou
colocar-nos-íamos no lugar do Senhor chegando à pretensão de espezinhar sem
limites a realidade criada por Ele. A melhor maneira de colocar o ser humano no
seu lugar e acabar com a sua pretensão de ser dominador absoluto da terra, é
voltar a propor a figura de um Pai criador e único dono do mundo; caso
contrário, o ser humano tenderá sempre a querer impor à realidade as suas
próprias leis e interesses.
3. O mistério do universo
76.
Na tradição judaico-cristã, dizer «criação» é mais do que dizer natureza,
porque tem a ver com um projecto do amor de Deus, onde cada criatura tem um
valor e um significado. A natureza entende-se habitualmente como um sistema que
se analisa, compreende e gere, mas a criação só se pode conceber como um dom
que vem das mãos abertas do Pai de todos, como uma realidade iluminada pelo
amor que nos chama a uma comunhão universal.
77. «A palavra do Senhor criou os
céus» (Sl 33/32, 6). Deste modo indica-se que o mundo procede, não
do caos nem do acaso, mas duma decisão, o que o exalta ainda mais. Há uma opção
livre, expressa na palavra criadora. O universo não apareceu como resultado
duma omnipotência arbitrária, duma demonstração de força ou dum desejo de
auto-afirmação. A criação pertence à ordem do amor. O amor de Deus é a razão
fundamental de toda a criação: «Tu amas tudo quanto existe e não detestas nada
do que fizeste; pois, se odiasses alguma coisa, não a terias criado» (Sab 11,
24). Então cada criatura é objecto da ternura do Pai que lhe atribui um lugar
no mundo. Até a vida efémera do ser mais insignificante é objecto do seu amor
e, naqueles poucos segundos de existência, Ele envolve-o com o seu carinho.
Dizia São Basílio Magno que o Criador é também «a bondade sem cálculos»,[44] e Dante Alighieri falava do «amor
que move o sol e as outras estrelas».[45] Por isso, das obras criadas pode-se
subir «à sua amorosa misericórdia».[46]
78.
Ao mesmo tempo, o pensamento judaico-cristão desmitificou a natureza. Sem
deixar de a admirar pelo seu esplendor e imensidão, já não lhe atribui um
carácter divino. Deste modo, ressalta ainda mais o nosso compromisso para com
ela. Um regresso à natureza não pode ser feito à custa da liberdade e da
responsabilidade do ser humano, que é parte do mundo com o dever de cultivar as
próprias capacidades para o proteger e desenvolver as suas potencialidades. Se
reconhecermos o valor e a fragilidade da natureza e, ao mesmo tempo, as
capacidades que o Criador nos deu, isto permite-nos acabar hoje com o mito
moderno do progresso material ilimitado. Um mundo frágil, com um ser humano a
quem Deus confia o cuidado do mesmo, interpela a nossa inteligência para
reconhecer como deveremos orientar, cultivar e limitar o nosso poder.
79. Neste universo, composto por
sistemas abertos que entram em comunicação uns com os outros, podemos descobrir
inumeráveis formas de relação e participação. Isto leva-nos também a pensar o
todo como aberto à transcendência de Deus, dentro da qual se desenvolve. A fé
permite-nos interpretar o significado e a beleza misteriosa do que acontece. A
liberdade humana pode prestar a sua contribuição inteligente para uma evolução
positiva, como pode também acrescentar novos males, novas causas de sofrimento
e verdadeiros atrasos. Isto dá lugar à apaixonante e dramática história humana,
capaz de transformar-se num desabrochamento de libertação, engrandecimento,
salvação e amor, ou, pelo contrário, num percurso de declínio e mútua
destruição. Por isso a Igreja, com a sua acção, procura não só lembrar o dever
de cuidar da natureza, mas também e «sobretudo proteger o homem da destruição
de si mesmo».[47]
80. Apesar disso, Deus, que deseja
actuar connosco e contar com a nossa cooperação, é capaz também de tirar algo
de bom dos males que praticamos, porque «o Espírito Santo possui uma inventiva
infinita, própria da mente divina, que sabe prover a desfazer os nós das
vicissitudes humanas mais complexas e impenetráveis».[48] De certa maneira, quis limitar-Se a
Si mesmo, criando um mundo necessitado de desenvolvimento, onde muitas coisas
que consideramos males, perigos ou fontes de sofrimento, na realidade fazem
parte das dores de parto que nos estimulam a colaborar com o Criador.[49] Ele está presente no mais íntimo de
cada coisa sem condicionar a autonomia da sua criatura, e isto dá lugar também
à legítima autonomia das realidades terrenas.[50]Esta presença divina, que garante a
permanência e o desenvolvimento de cada ser, «é a continuação da acção
criadora».[51] O Espírito de Deus encheu o
universo de potencialidades que permitem que, do próprio seio das coisas, possa
brotar sempre algo de novo: «A natureza nada mais é do que a razão de certa
arte – concretamente a arte divina – inscrita nas coisas, pela qual as próprias
coisas se movem para um fim determinado. Como se o mestre construtor de navios
pudesse conceder à madeira a possibilidade de se mover a si mesma para tomar a
forma da nave».[52]
81.
Embora suponha também processos evolutivos, o ser humano implica uma novidade
que não se explica cabalmente pela evolução doutros sistemas abertos. Cada um
de nós tem em si uma identidade pessoal, capaz de entrar em diálogo com os
outros e com o próprio Deus. A capacidade de reflexão, o raciocínio, a
criatividade, a interpretação, a elaboração artística e outras capacidades
originais manifestam uma singularidade que transcende o âmbito físico e
biológico. A novidade qualitativa, implicada no aparecimento dum ser pessoal
dentro do universo material, pressupõe uma acção directa de Deus, uma chamada
peculiar à vida e à relação de um Tu com outro tu. A partir dos textos
bíblicos, consideramos o ser humano como sujeito, que nunca pode ser reduzido à
categoria de objecto.
82. Mas seria errado também pensar
que os outros seres vivos devam ser considerados como meros objectos submetidos
ao domínio arbitrário do ser humano. Quando se propõe uma visão da natureza
unicamente como objecto de lucro e interesse, isso comporta graves
consequências também para a sociedade. A visão que consolida o arbítrio do mais
forte favoreceu imensas desigualdades, injustiças e violências para a maior
parte da humanidade, porque os recursos tornam-se propriedade do primeiro que
chega ou de quem tem mais poder: o vencedor leva tudo. O ideal de harmonia,
justiça, fraternidade e paz que Jesus propõe situa-se nos antípodas de tal
modelo, como Ele mesmo Se expressou ao compará-lo com os poderes do seu tempo:
«Sabeis que os chefes das nações as governam como seus senhores, e que os
grandes exercem sobre elas o seu poder. Não seja assim entre vós. Pelo
contrário, quem entre vós quiser fazer-se grande, seja o vosso servo» (Mt 20,
25-26).
83. A meta do caminho do universo
situa-se na plenitude de Deus, que já foi alcançada por Cristo ressuscitado,
fulcro da maturação universal.[53] E assim juntamos mais um argumento
para rejeitar todo e qualquer domínio despótico e irresponsável do ser humano
sobre as outras criaturas. O fim último das restantes criaturas não somos nós.
Mas todas avançam, juntamente connosco e através de nós, para a meta comum, que
é Deus, numa plenitude transcendente onde Cristo ressuscitado tudo abraça e
ilumina. Com efeito, o ser humano, dotado de inteligência e amor e atraído pela
plenitude de Cristo, é chamado a reconduzir todas as criaturas ao seu Criador.
4. A mensagem de cada criatura na
harmonia de toda a criação
84.
O facto de insistir na afirmação de que o ser humano é imagem de Deus não
deveria fazer-nos esquecer que cada criatura tem uma função e nenhuma é
supérflua. Todo o universo material é uma linguagem do amor de Deus, do seu
carinho sem medida por nós. O solo, a água, as montanhas: tudo é carícia de
Deus. A história da própria amizade com Deus desenrola-se sempre num espaço
geográfico que se torna um sinal muito pessoal, e cada um de nós guarda na
memória lugares cuja lembrança nos faz muito bem. Quem cresceu no meio de
montes, quem na infância se sentava junto do riacho a beber, ou quem jogava
numa praça do seu bairro, quando volta a esses lugares sente-se chamado a
recuperar a sua própria identidade.
85. Deus escreveu um livro estupendo,
«cujas letras são representadas pela multidão de criaturas presentes no
universo».[54] E justamente afirmaram os bispos do
Canadá que nenhuma criatura fica fora desta manifestação de Deus: «Desde os
panoramas mais amplos às formas de vida mais frágeis, a natureza é um manancial
incessante de encanto e reverência. Trata-se duma contínua revelação do
divino».[55]Os bispos do Japão, por sua vez, disseram
algo muito sugestivo: «Sentir cada criatura que canta o hino da sua existência
é viver jubilosamente no amor de Deus e na esperança».[56] Esta contemplação da criação
permite-nos descobrir qualquer ensinamento que Deus nos quer transmitir através
de cada coisa, porque, «para o crente, contemplar a criação significa também
escutar uma mensagem, ouvir uma voz paradoxal e silenciosa».[57] Podemos afirmar que, «ao lado da
revelação propriamente dita, contida nas Sagradas Escrituras, há uma
manifestação divina no despontar do sol e no cair da noite».[58]Prestando atenção a esta manifestação, o
ser humano aprende a reconhecer-se a si mesmo na relação com as outras
criaturas: «Eu expresso-me exprimindo o mundo; exploro a minha sacralidade
decifrando a do mundo».[59]
86. O conjunto do universo, com as
suas múltiplas relações, mostra melhor a riqueza inesgotável de Deus. São Tomás
de Aquino sublinhava, sabiamente, que a multiplicidade e a variedade «provêm da
intenção do primeiro agente», o Qual quis que «o que falta a cada coisa, para
representar a bondade divina, seja suprido pelas outras»,[60] pois a sua bondade «não pode ser convenientemente
representada por uma só criatura».[61] Por isso, precisamos de individuar
a variedade das coisas nas suas múltiplas relações.[62] Assim, compreende-se melhor a
importância e o significado de qualquer criatura, se a contemplarmos no
conjunto do plano de Deus. Tal é o ensinamento do Catecismo: «A
interdependência das criaturas é querida por Deus. O sol e a lua, o cedro e a
florzinha, a águia e o pardal: o espectáculo das suas incontáveis diversidades
e desigualdades significa que nenhuma criatura se basta a si mesma. Elas só
existem na dependência umas das outras, para se completarem mutuamente no
serviço umas das outras».[63]
87.
Quando nos damos conta do reflexo de Deus em tudo o que existe, o coração
experimenta o desejo de adorar o Senhor por todas as suas criaturas e
juntamente com elas, como se vê neste gracioso cântico de São Francisco de
Assis:
«Louvado sejas, meu Senhor,
com todas as tuas criaturas,
especialmente o meu senhor irmão sol,
o qual faz o dia e por ele nos alumia.
E ele é belo e radiante com grande esplendor:
de Ti, Altíssimo, nos dá ele a imagem.
Louvado sejas, meu Senhor,
pela irmã lua e pelas estrelas,
que no céu formaste claras, preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão vento
pelo ar, pela nuvem, pelo sereno, e todo o tempo,
com o qual, às tuas criaturas, dás o sustento.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água,
que é tão útil e humilde, e preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo,
pelo qual iluminas a noite:
ele é belo e alegre, vigoroso e forte».[64]
com todas as tuas criaturas,
especialmente o meu senhor irmão sol,
o qual faz o dia e por ele nos alumia.
E ele é belo e radiante com grande esplendor:
de Ti, Altíssimo, nos dá ele a imagem.
Louvado sejas, meu Senhor,
pela irmã lua e pelas estrelas,
que no céu formaste claras, preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão vento
pelo ar, pela nuvem, pelo sereno, e todo o tempo,
com o qual, às tuas criaturas, dás o sustento.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água,
que é tão útil e humilde, e preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo,
pelo qual iluminas a noite:
ele é belo e alegre, vigoroso e forte».[64]
88. Os bispos do Brasil sublinharam
que toda a natureza, além de manifestar Deus, é lugar da sua presença. Em cada
criatura, habita o seu Espírito vivificante, que nos chama a um relacionamento
com Ele.[65] A descoberta desta presença
estimula em nós o desenvolvimento das «virtudes ecológicas».[66] Mas, quando dizemos isto, não
esqueçamos que há também uma distância infinita, pois as coisas deste mundo não
possuem a plenitude de Deus. Esquecê-lo, aliás, também não faria bem às
criaturas, porque não reconheceríamos o seu lugar verdadeiro e próprio,
acabando por lhes exigir indevidamente aquilo que, na sua pequenez, não nos podem
dar.
5.
Uma comunhão universal
89. As criaturas deste mundo não
podem ser consideradas um bem sem dono: «Todas são tuas, ó Senhor, que amas a
vida» (Sab11, 26). Isto gera a convicção de que nós e todos os seres do
universo, sendo criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços invisíveis e
formamos uma espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos impele
a um respeito sagrado, amoroso e humilde. Quero lembrar que «Deus uniu-nos tão
estreitamente ao mundo que nos rodeia, que a desertificação do solo é como uma
doença para cada um, e podemos lamentar a extinção de uma espécie como se fosse
uma mutilação».[67]
90. Isto não significa igualar todos
os seres vivos e tirar ao ser humano aquele seu valor peculiar que,
simultaneamente, implica uma tremenda responsabilidade. Também não requer uma
divinização da terra, que nos privaria da nossa vocação de colaborar com ela e
proteger a sua fragilidade. Estas concepções acabariam por criar novos
desequilíbrios, na tentativa de fugir da realidade que nos interpela.[68] Às vezes nota-se a obsessão de
negar qualquer preeminência à pessoa humana, conduzindo-se uma luta em prol das
outras espécies que não se vê na hora de defender igual dignidade entre os
seres humanos. Devemos, certamente, ter a preocupação de que os outros seres
vivos não sejam tratados de forma irresponsável, mas deveriam indignar-nos
sobretudo as enormes desigualdades que existem entre nós, porque continuamos a
tolerar que alguns se considerem mais dignos do que outros. Deixamos de notar
que alguns se arrastam numa miséria degradante, sem possibilidades reais de
melhoria, enquanto outros não sabem sequer que fazer ao que têm, ostentam
vaidosamente uma suposta superioridade e deixam atrás de si um nível de
desperdício tal que seria impossível generalizar sem destruir o planeta. Na
prática, continuamos a admitir que alguns se sintam mais humanos que outros,
como se tivessem nascido com maiores direitos.
91.
Não pode ser autêntico um sentimento de união íntima com os outros seres da
natureza, se ao mesmo tempo não houver no coração ternura, compaixão e
preocupação pelos seres humanos. É evidente a incoerência de quem luta contra o
tráfico de animais em risco de extinção, mas fica completamente indiferente perante
o tráfico de pessoas, desinteressa-se dos pobres ou procura destruir outro ser
humano de que não gosta. Isto compromete o sentido da luta pelo meio ambiente.
Não é por acaso que São Francisco, no cântico onde louva a Deus pelas
criaturas, acrescenta o seguinte: «Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que
perdoam por teu amor». Tudo está interligado. Por isso, exige-se uma
preocupação pelo meio ambiente, unida ao amor sincero pelos seres humanos e a
um compromisso constante com os problemas da sociedade.
92. Além disso, quando o coração está
verdadeiramente aberto a uma comunhão universal, nada e ninguém fica excluído
desta fraternidade. Portanto, é verdade também que a indiferença ou a crueldade
com as outras criaturas deste mundo sempre acabam de alguma forma por
repercutir-se no tratamento que reservamos aos outros seres humanos. O coração
é um só, e a própria miséria que leva a maltratar um animal não tarda a
manifestar-se na relação com as outras pessoas. Todo o encarniçamento contra
qualquer criatura «é contrário à dignidade humana».[69] Não podemos considerar-nos grandes
amantes da realidade, se excluímos dos nossos interesses alguma parte dela:
«Paz, justiça e conservação da criação são três questões absolutamente ligadas,
que não se poderão separar, tratando-as individualmente sob pena de cair
novamente no reducionismo».[70] Tudo está relacionado, e todos nós,
seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação
maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma das suas criaturas
e que nos une também, com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio
e à mãe terra.
6. O destino comum dos bens
93. Hoje, crentes e não-crentes estão
de acordo que a terra é, essencialmente, uma herança comum, cujos frutos devem
beneficiar a todos. Para os crentes, isto torna-se uma questão de fidelidade ao
Criador, porque Deus criou o mundo para todos. Por conseguinte, toda a
abordagem ecológica deve integrar uma perspectiva social que tenha em conta os
direitos fundamentais dos mais desfavorecidos. O princípio da subordinação da
propriedade privada ao destino universal dos bens e, consequentemente, o
direito universal ao seu uso é uma «regra de ouro» do comportamento social e o
«primeiro princípio de toda a ordem ético-social».[71] A tradição cristã nunca reconheceu
como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a
função social de qualquer forma de propriedade privada. São João Paulo II lembrou
esta doutrina, com grande ênfase, dizendo que «Deus deu a terra a todo o género
humano, para que ela sustente todos os seus membros, sem excluir nem
privilegiar ninguém».[72]São palavras densas e fortes. Insistiu
que «não seria verdadeiramente digno do homem, um tipo de desenvolvimento que
não respeitasse e promovesse os direitos humanos, pessoais e sociais,
económicos e políticos, incluindo os direitos das nações e dos povos».[73]Com grande clareza, explicou que «a
Igreja defende, sim, o legítimo direito à propriedade privada, mas ensina, com
não menor clareza, que sobre toda a propriedade particular pesa sempre uma
hipoteca social, para que os bens sirvam ao destino geral que Deus lhes deu».[74] Por isso, afirma que «não é segundo
o desígnio de Deus gerir este dom de modo tal que os seus benefícios aproveitem
só a alguns poucos».[75] Isto põe seriamente em discussão os
hábitos injustos duma parte da humanidade.[76]
94. O rico e o pobre têm igual
dignidade, porque «quem os fez a ambos foi o Senhor» (Pr 22, 2);
«Ele criou o pequeno e o grande» (Sab 6, 7) e «faz com que o sol se
levante sobre os bons e os maus» (Mt 5, 45). Isto tem consequências
práticas, como explicitaram os bispos do Paraguai: «Cada camponês tem direito
natural de possuir um lote razoável de terra, onde possa estabelecer o seu lar,
trabalhar para a subsistência da sua família e gozar de segurança existencial.
Este direito deve ser de tal forma garantido, que o seu exercício não seja
ilusório mas real. Isto significa que, além do título de propriedade, o
camponês deve contar com meios de formação técnica, empréstimos, seguros e
acesso ao mercado».[77]
95. O meio ambiente é um bem
colectivo, património de toda a humanidade e responsabilidade de todos. Quem
possui uma parte é apenas para a administrar em benefício de todos. Se não o
fizermos, carregamos na consciência o peso de negar a existência aos outros.
Por isso, os bispos da Nova Zelândia perguntavam-se que significado possa ter o
mandamento «não matarás», quando «uns vinte por cento da população mundial
consomem recursos numa medida tal que roubam às nações pobres, e às gerações
futuras, aquilo de que necessitam para sobreviver».[78]
7. O olhar de Jesus
96. Jesus retoma a fé bíblica no Deus
criador e destaca um dado fundamental: Deus é Pai (cf. Mt 11,
25). Em colóquio com os seus discípulos, Jesus convidava-os a reconhecer a
relação paterna que Deus tem com todas as criaturas e recordava-lhes, com
comovente ternura, como cada uma delas era importante aos olhos d’Ele: «Não se
vendem cinco pássaros por duas pequeninas moedas? Contudo, nenhum deles passa
despercebido diante de Deus» (Lc 12, 6). «Olhai as aves do céu: não
semeiam nem ceifam nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai celeste alimenta-as»
(Mt 6, 26).
97. O Senhor podia convidar os outros
a estar atentos à beleza que existe no mundo, porque Ele próprio vivia em
contacto permanente com a natureza e prestava-lhe uma atenção cheia de carinho
e admiração. Quando percorria os quatro cantos da sua terra, detinha-Se a
contemplar a beleza semeada por seu Pai e convidava os discípulos a
individuarem, nas coisas, uma mensagem divina: «Levantai os olhos e vede os
campos que estão doirados para a ceifa» (Jo 4, 35). «O Reino dos
Céus é semelhante a um grão de mostarda que um homem tomou e semeou no seu
campo. É a menor de todas as sementes; mas, depois de crescer, torna-se a maior
planta do horto e transforma-se numa árvore» (Mt 13, 31-32).
98. Jesus vivia em plena harmonia com
a criação, com grande maravilha dos outros: «Quem é este, a quem até o vento e
o mar obedecem?» (Mt 8, 27). Não Se apresentava como um asceta
separado do mundo ou inimigo das coisas aprazíveis da vida. Falando de Si
mesmo, declarou: «Veio o Filho do Homem que come e bebe, e dizem: “Aí está um
glutão e bebedor de vinho”» (Mt11, 19). Encontrava-Se longe das
filosofias que desprezavam o corpo, a matéria e as realidades deste mundo.
Todavia, ao longo da história, estes dualismos combalidos tiveram notável
influência nalguns pensadores cristãos e desfiguraram o Evangelho. Jesus
trabalhava com suas mãos, entrando diariamente em contacto com matéria criada
por Deus para a moldar com a sua capacidade de artesão. É digno de nota que a
maior parte da sua existência terrena tenha sido consagrada a esta tarefa,
levando uma vida simples que não despertava maravilha alguma: «Não é Ele o
carpinteiro, o filho de Maria?» (Mc 6, 3). Assim santificou o
trabalho, atribuindo-lhe um valor peculiar para o nosso amadurecimento.
São João Paulo II ensinava
que, «suportando o que há de penoso no trabalho em união com Cristo crucificado
por nós, o homem colabora, de alguma forma, com o Filho de Deus na redenção da
humanidade».[79]
99. Segundo a compreensão cristã da
realidade, o destino da criação inteira passa pelo mistério de Cristo, que nela
está presente desde a origem: «Todas as coisas foram criadas por Ele e para
Ele» (Cl 1, 16).[80] O prólogo do Evangelho de João (1,
1-18) mostra a actividade criadora de Cristo como Palavra divina (Logos).
Mas o mesmo prólogo surpreende ao afirmar que esta Palavra «Se fez carne» (Jo 1,
14). Uma Pessoa da Santíssima Trindade inseriu-Se no universo criado,
partilhando a própria sorte com ele até à cruz. Desde o início do mundo, mas de
modo peculiar a partir da encarnação, o mistério de Cristo opera veladamente no
conjunto da realidade natural, sem com isso afectar a sua autonomia.
100. O Novo Testamento não nos fala
só de Jesus terreno e da sua relação tão concreta e amorosa com o mundo;
mostra-no-Lo também como ressuscitado e glorioso, presente em toda a criação
com o seu domínio universal. «Foi n’Ele que aprouve a Deus fazer habitar toda a
plenitude e, por Ele e para Ele, reconciliar todas as coisas (…), tanto as que
estão na terra como as que estão no céu» (Cl 1, 19-20). Isto
lança-nos para o fim dos tempos, quando o Filho entregar ao Pai todas as coisas
«a fim de que Deus seja tudo em todos» (1 Cor 15, 28). Assim, as
criaturas deste mundo já não nos aparecem como uma realidade meramente natural,
porque o Ressuscitado as envolve misteriosamente e guia para um destino de
plenitude. As próprias flores do campo e as aves que Ele, admirado, contemplou
com os seus olhos humanos, agora estão cheias da sua presença luminosa.
CAPÍTULO
III
A RAIZ HUMANA DA CRISE ECOLÓGICA
101.
Para nada serviria descrever os sintomas, se não reconhecêssemos a raiz humana
da crise ecológica. Há um modo desordenado de conceber a vida e a acção do ser
humano, que contradiz a realidade até ao ponto de a arruinar. Não poderemos
deter-nos a pensar nisto mesmo? Proponho, pois, que nos concentremos no
paradigma tecnocrático dominante e no lugar que ocupa nele o ser humano e a sua
acção no mundo.
1. A tecnologia: criatividade e poder
102. A humanidade entrou numa nova
era, em que o poder da tecnologia nos põe diante duma encruzilhada. Somos
herdeiros de dois séculos de ondas enormes de mudanças: a máquina a vapor, a
ferrovia, o telégrafo, a electricidade, o automóvel, o avião, as indústrias
químicas, a medicina moderna, a informática e, mais recentemente, a revolução
digital, a robótica, as biotecnologias e as nanotecnologias. É justo que nos
alegremos com estes progressos e nos entusiasmemos à vista das amplas
possibilidades que nos abrem estas novidades incessantes, porque «a ciência e a
tecnologia são um produto estupendo da criatividade humana que Deus nos deu».[81] A transformação da natureza para
fins úteis é uma característica do género humano, desde os seus primórdios; e
assim a técnica «exprime a tensão do ânimo humano para uma gradual superação de
certos condicionamentos materiais».[82] A tecnologia deu remédio a inúmeros
males, que afligiam e limitavam o ser humano. Não podemos deixar de apreciar e
agradecer os progressos alcançados especialmente na medicina, engenharia e
comunicações. Como não havemos de reconhecer todos os esforços de tantos
cientistas e técnicos que elaboraram alternativas para um desenvolvimento
sustentável?
103.
A tecnociência, bem orientada, pode produzir coisas realmente valiosas para
melhorar a qualidade de vida do ser humano, desde os objectos de uso doméstico
até aos grandes meios de transporte, pontes, edifícios, espaços públicos. É
capaz também de produzir coisas belas e fazer o ser humano, imerso no mundo
material, dar o «salto» para o âmbito da beleza. Poder-se-á negar a beleza de
um avião ou de alguns arranha-céus? Há obras pictóricas e musicais de valor,
obtidas com o recurso aos novos instrumentos técnicos. Assim, no desejo de
beleza do artífice e em quem contempla esta beleza dá-se o salto para uma certa
plenitude propriamente humana.
104.
Não podemos, porém, ignorar que a energia nuclear, a biotecnologia, a
informática, o conhecimento do nosso próprio DNA e outras potencialidades que
adquirimos, nos dão um poder tremendo. Ou melhor: dão, àqueles que detêm o
conhecimento e sobretudo o poder económico para o desfrutar, um domínio
impressionante sobre o conjunto do género humano e do mundo inteiro. Nunca a
humanidade teve tanto poder sobre si mesma, e nada garante que o utilizará bem,
sobretudo se se considera a maneira como o está a fazer. Basta lembrar as
bombas atómicas lançadas em pleno século XX, bem como a grande exibição de
tecnologia ostentada pelo nazismo, o comunismo e outros regimes totalitários e
que serviu para o extermínio de milhões de pessoas, sem esquecer que hoje a
guerra dispõe de instrumentos cada vez mais mortíferos. Nas mãos de quem está e
pode chegar a estar tanto poder? É tremendamente arriscado que resida numa
pequena parte da humanidade.
105. Tende-se a crer que «toda a
aquisição de poder seja simplesmente progresso, aumento de segurança, de
utilidade, de bem-estar, de força vital, de plenitude de valores»[83], como se a realidade, o bem e a verdade
desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia. A
verdade é que «o homem moderno não foi educado para o recto uso do poder»,[84]porque o imenso crescimento tecnológico
não foi acompanhado por um desenvolvimento do ser humano quanto à
responsabilidade, aos valores, à consciência. Cada época tende a desenvolver
uma reduzida autoconsciência dos próprios limites. Por isso, é possível que
hoje a humanidade não se dê conta da seriedade dos desafios que se lhe
apresentam, e «cresce continuamente a possibilidade de o homem fazer mau uso do
seu poder» quando «não existem normas de liberdade, mas apenas pretensas
necessidades de utilidade e segurança».[85] O ser humano não é plenamente
autónomo. A sua liberdade adoece, quando se entrega às forças cegas do
inconsciente, das necessidades imediatas, do egoísmo, da violência brutal.
Neste sentido, ele está nu e exposto frente ao seu próprio poder que continua a
crescer, sem ter os instrumentos para o controlar. Talvez disponha de
mecanismos superficiais, mas podemos afirmar que carece de uma ética sólida,
uma cultura e uma espiritualidade que lhe ponham realmente um limite e o contenham
dentro dum lúcido domínio de si.
2. A globalização do paradigma
tecnocrático
106. Mas o problema fundamental é
outro e ainda mais profundo: o modo como realmente a humanidade assumiu a
tecnologia e o seu desenvolvimento juntamente com um paradigma
homogéneo e unidimensional. Neste paradigma, sobressai uma concepção do
sujeito que progressivamente, no processo lógico-racional, compreende e assim
se apropria do objecto que se encontra fora. Um tal sujeito desenvolve-se ao
estabelecer o método científico com a sua experimentação, que já é
explicitamente uma técnica de posse, domínio e transformação. É como se o
sujeito tivesse à sua frente a realidade informe totalmente disponível para a
manipulação. Sempre se verificou a intervenção do ser humano sobre a natureza,
mas durante muito tempo teve a característica de acompanhar, secundar as
possibilidades oferecidas pelas próprias coisas; tratava-se de receber o que a
realidade natural por si permitia, como que estendendo a mão. Mas, agora, o que
interessa é extrair o máximo possível das coisas por imposição da mão humana,
que tende a ignorar ou esquecer a realidade própria do que tem à sua frente.
Por isso, o ser humano e as coisas deixaram de se dar amigavelmente a mão,
tornando-se contendentes. Daqui passa-se facilmente à ideia dum crescimento
infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da
finança e da tecnologia. Isto supõe a mentira da disponibilidade infinita dos
bens do planeta, que leva a «espremê-lo» até ao limite e para além do mesmo.
Trata-se do falso pressuposto de que «existe uma quantidade ilimitada de
energia e de recursos a serem utilizados, que a sua regeneração é possível de
imediato e que os efeitos negativos das manipulações da ordem natural podem ser
facilmente absorvidos».[86]
107.
Assim podemos afirmar que, na origem de muitas dificuldades do mundo actual,
está principalmente a tendência, nem sempre consciente, de elaborar a
metodologia e os objectivos da tecnociência segundo um paradigma de compreensão
que condiciona a vida das pessoas e o funcionamento da sociedade. Os efeitos da
aplicação deste modelo a toda a realidade, humana e social, constatam-se na
degradação do meio ambiente, mas isto é apenas um sinal do reducionismo que
afecta a vida humana e a sociedade em todas as suas dimensões. É preciso
reconhecer que os produtos da técnica não são neutros, porque criam uma trama
que acaba por condicionar os estilos de vida e orientam as possibilidades
sociais na linha dos interesses de determinados grupos de poder. Certas opções,
que parecem puramente instrumentais, na realidade são opções sobre o tipo de
vida social que se pretende desenvolver.
108. Não se consegue pensar que seja
possível sustentar outro paradigma cultural e servir-se da técnica como mero
instrumento, porque hoje o paradigma tecnocrático tornou-se tão dominante que é
muito difícil prescindir dos seus recursos, e mais difícil ainda é utilizar os
seus recursos sem ser dominados pela sua lógica. Tornou-se anticultural a
escolha dum estilo de vida, cujos objectivos possam ser, pelo menos em parte,
independentes da técnica, dos seus custos e do seu poder globalizante e
massificador. Com efeito, a técnica tem tendência a fazer com que nada fique
fora da sua lógica férrea, e «o homem que é o seu protagonista sabe que, em
última análise, não se trata de utilidade nem de bem-estar, mas de domínio;
domínio no sentido extremo da palavra».[87]Por isso, «procura controlar os elementos
da natureza e, conjuntamente, os da existência humana».[88] Reduzem-se assim a capacidade de
decisão, a liberdade mais genuína e o espaço para a criatividade alternativa
dos indivíduos.
109. O paradigma tecnocrático tende a
exercer o seu domínio também sobre a economia e a política. A economia assume
todo o desenvolvimento tecnológico em função do lucro, sem prestar atenção a
eventuais consequências negativas para o ser humano. A finança sufoca a
economia real. Não se aprendeu a lição da crise financeira mundial e, muito
lentamente, se aprende a lição do deterioramento ambiental. Nalguns círculos,
defende-se que a economia actual e a tecnologia resolverão todos os problemas
ambientais, do mesmo modo que se afirma, com linguagens não académicas, que os
problemas da fome e da miséria no mundo serão resolvidos simplesmente com o
crescimento do mercado. Não é uma questão de teorias económicas, que hoje talvez
já ninguém se atreva a defender, mas da sua instalação no desenvolvimento
concreto da economia. Aqueles que não o afirmam em palavras defendem-no com os
factos, quando parece não preocupar-se com o justo nível da produção, uma
melhor distribuição da riqueza, um cuidado responsável do meio ambiente ou os
direitos das gerações futuras. Com os seus comportamentos, afirmam que é
suficiente o objectivo da maximização dos ganhos. Mas o mercado, por si mesmo,
não garante o desenvolvimento humano integral nem a inclusão social.[89] Entretanto temos um
«superdesenvolvimento dissipador e consumista que contrasta, de modo
inadmissível, com perduráveis situações de miséria desumanizadora»,[90] mas não se criam, de forma suficientemente
rápida, instituições económicas e programas sociais que permitam aos mais
pobres terem regularmente acesso aos recursos básicos. Não temos suficiente
consciência de quais sejam as raízes mais profundas dos desequilíbrios actuais:
estes têm a ver com a orientação, os fins, o sentido e o contexto social do
crescimento tecnológico e económico.
110. A especialização própria da
tecnologia comporta grande dificuldade para se conseguir um olhar de conjunto.
A fragmentação do saber realiza a sua função no momento de se obter aplicações
concretas, mas frequentemente leva a perder o sentido da totalidade, das
relações que existem entre as coisas, do horizonte alargado: um sentido, que se
torna irrelevante. Isto impede de individuar caminhos adequados para resolver
os problemas mais complexos do mundo actual, sobretudo os do meio ambiente e
dos pobres, que não se podem enfrentar a partir duma única perspectiva nem dum
único tipo de interesses. Uma ciência, que pretenda oferecer soluções para os
grandes problemas, deveria necessariamente ter em conta tudo o que o
conhecimento gerou nas outras áreas do saber, incluindo a filosofia e a ética
social. Mas este é actualmente um procedimento difícil de seguir. Por isso
também não se consegue reconhecer verdadeiros horizontes éticos de referência.
A vida passa a ser uma rendição às circunstâncias condicionadas pela técnica,
entendida como o recurso principal para interpretar a existência. Na realidade
concreta que nos interpela, aparecem vários sintomas que mostram o erro, tais
como a degradação ambiental, a ansiedade, a perda do sentido da vida e da
convivência social. Assim se demonstra uma vez mais que «a realidade é superior
à ideia».[91]
111.
A cultura ecológica não se pode reduzir a uma série de respostas urgentes e
parciais para os problemas que vão surgindo à volta da degradação ambiental, do
esgotamento das reservas naturais e da poluição. Deveria ser um olhar
diferente, um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de
vida e uma espiritualidade que oponham resistência ao avanço do paradigma
tecnocrático. Caso contrário, até as melhores iniciativas ecologistas podem
acabar bloqueadas na mesma lógica globalizada. Buscar apenas um remédio técnico
para cada problema ambiental que aparece, é isolar coisas que, na realidade,
estão interligadas e esconder os problemas verdadeiros e mais profundos do
sistema mundial.
112.
Todavia é possível voltar a ampliar o olhar, e a liberdade humana é capaz de
limitar a técnica, orientá-la e colocá-la ao serviço doutro tipo de progresso,
mais saudável, mais humano, mais social, mais integral. De facto verifica-se a
libertação do paradigma tecnocrático nalgumas ocasiões. Por exemplo, quando
comunidades de pequenos produtores optam por sistemas de produção menos
poluentes, defendendo um modelo não-consumista de vida, alegria e convivência.
Ou quando a técnica tem em vista prioritariamente resolver os problemas
concretos dos outros, com o compromisso de os ajudar a viver com mais dignidade
e menor sofrimento. E ainda quando a busca criadora do belo e a sua
contemplação conseguem superar o poder objectivador numa espécie de salvação
que acontece na beleza e na pessoa que a contempla. A humanidade autêntica, que
convida a uma nova síntese, parece habitar no meio da civilização tecnológica
de forma quase imperceptível, como a neblina que filtra por baixo da porta
fechada. Será uma promessa permanente que, apesar de tudo, desbrocha como uma
obstinada resistência daquilo que é autêntico?
113.
Além disso, as pessoas parecem já não acreditar num futuro feliz nem confiam
cegamente num amanhã melhor a partir das condições actuais do mundo e das
capacidades técnicas. Tomam consciência de que o progresso da ciência e da
técnica não equivale ao progresso da humanidade e da história, e vislumbram que
os caminhos fundamentais para um futuro feliz são outros. Apesar disso, também
não se imaginam renunciando às possibilidades que oferece a tecnologia. A
humanidade mudou profundamente, e o avolumar-se de constantes novidades
consagra uma fugacidade que nos arrasta à superfície numa única direcção.
Torna-se difícil parar para recuperarmos a profundidade da vida. Se a
arquitectura reflecte o espírito duma época, as mega-estruturas e as casas em
série expressam o espírito da técnica globalizada, onde a permanente novidade
dos produtos se une a um tédio enfadonho. Não nos resignemos a isto nem renunciemos
a perguntar-nos pelos fins e o sentido de tudo. Caso contrário, apenas
legitimaremos o estado de facto e precisaremos de mais sucedâneos para suportar
o vazio.
114.
O que está a acontecer põe-nos perante a urgência de avançar numa corajosa
revolução cultural. A ciência e a tecnologia não são neutrais, mas podem, desde
o início até ao fim dum processo, envolver diferentes intenções e
possibilidades que se podem configurar de várias maneiras. Ninguém quer o
regresso à Idade da Pedra, mas é indispensável abrandar a marcha para olhar a
realidade doutra forma, recolher os avanços positivos e sustentáveis e ao mesmo
tempo recuperar os valores e os grandes objectivos arrasados por um
desenfreamento megalómano.
3. Crise do antropocentrismo moderno
e suas consequências
115. O antropocentrismo moderno
acabou, paradoxalmente, por colocar a razão técnica acima da realidade, porque
este ser humano «já não sente a natureza como norma válida nem como um refúgio
vivente. Sem se pôr qualquer hipótese, vê-a, objectivamente, como espaço e
matéria onde realizar uma obra em que se imerge completamente, sem se importar
com o que possa suceder a ela».[92] Assim debilita-se o valor
intrínseco do mundo. Mas, se o ser humano não redescobre o seu verdadeiro
lugar, compreende-se mal a si mesmo e acaba por contradizer a sua própria
realidade. «Não só a terra foi dada por Deus ao homem, que a deve usar
respeitando a intenção originária de bem, segundo a qual lhe foi entregue; mas
o homem é doado a si mesmo por Deus, devendo por isso respeitar a estrutura
natural e moral de que foi dotado».[93]
116. Nos tempos modernos,
verificou-se um notável excesso antropocêntrico, que hoje, com outra roupagem,
continua a minar toda a referência a algo de comum e qualquer tentativa de
reforçar os laços sociais. Por isso, chegou a hora de prestar novamente atenção
à realidade com os limites que a mesma impõe e que, por sua vez, constituem a
possibilidade dum desenvolvimento humano e social mais saudável e fecundo. Uma
apresentação inadequada da antropologia cristã acabou por promover uma
concepção errada da relação do ser humano com o mundo. Muitas vezes foi
transmitido um sonho prometeico de domínio sobre o mundo, que provocou a
impressão de que o cuidado da natureza fosse actividade de fracos. Mas a
interpretação correcta do conceito de ser humano como senhor do universo é
entendê-lo no sentido de administrador responsável.[94]
117. A falta de preocupação por medir
os danos à natureza e o impacto ambiental das decisões é apenas o reflexo
evidente do desinteresse em reconhecer a mensagem que a natureza traz inscrita
nas suas próprias estruturas. Quando, na própria realidade, não se reconhece a
importância dum pobre, dum embrião humano, duma pessoa com deficiência – só
para dar alguns exemplos –, dificilmente se saberá escutar os gritos da própria
natureza. Tudo está interligado. Se o ser humano se declara autónomo da
realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua
existência, porque «em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na
obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a
revolta da natureza».[95]
118. Esta situação leva-nos a uma
esquizofrenia permanente, que se estende da exaltação tecnocrática, que não
reconhece aos outros seres um valor próprio, até à reacção de negar qualquer
valor peculiar ao ser humano. Contudo não se pode prescindir da humanidade. Não
haverá uma nova relação com a natureza, sem um ser humano novo. Não há ecologia
sem uma adequada antropologia. Quando a pessoa humana é considerada apenas mais
um ser entre outros, que provém de jogos do acaso ou dum determinismo físico,
«corre o risco de atenuar-se, nas consciências, a noção da responsabilidade».[96] Um antropocentrismo desordenado não
deve necessariamente ser substituído por um «biocentrismo», porque isto
implicaria introduzir um novo desequilíbrio que não só não resolverá os
problemas existentes, mas acrescentará outros. Não se pode exigir do ser humano
um compromisso para com o mundo, se ao mesmo tempo não se reconhecem e
valorizam as suas peculiares capacidades de conhecimento, vontade, liberdade e
responsabilidade.
119.
A crítica do antropocentrismo desordenado não deveria deixar em segundo plano
também o valor das relações entre as pessoas. Se a crise ecológica é uma
expressão ou uma manifestação externa da crise ética, cultural e espiritual da
modernidade, não podemos iludir-nos de sanar a nossa relação com a natureza e o
meio ambiente, sem curar todas as relações humanas fundamentais. Quando o
pensamento cristão reivindica, para o ser humano, um valor peculiar acima das
outras criaturas, suscita a valorização de cada pessoa humana e, assim,
estimula o reconhecimento do outro. A abertura a um «tu» capaz de conhecer,
amar e dialogar continua a ser a grande nobreza da pessoa humana. Por isso,
para uma relação adequada com o mundo criado, não é necessário diminuir a
dimensão social do ser humano nem a sua dimensão transcendente, a sua abertura
ao «Tu» divino. Com efeito, não se pode propor uma relação com o ambiente,
prescindindo da relação com as outras pessoas e com Deus. Seria um
individualismo romântico disfarçado de beleza ecológica e um confinamento
asfixiante na imanência.
120. Uma vez que tudo está
relacionado, também não é compatível a defesa da natureza com a justificação do
aborto. Não parece viável um percurso educativo para acolher os seres frágeis
que nos rodeiam e que, às vezes, são molestos e inoportunos, quando não se dá
protecção a um embrião humano ainda que a sua chegada seja causa de incómodos e
dificuldades: «Se se perde a sensibilidade pessoal e social ao acolhimento duma
nova vida, definham também outras formas de acolhimento úteis à vida social».[97]
121. Espera-se ainda o
desenvolvimento duma nova síntese, que ultrapasse as falsas dialécticas dos
últimos séculos. O próprio cristianismo, mantendo-se fiel à sua identidade e ao
tesouro de verdade que recebeu de Jesus Cristo, não cessa de se repensar e
reformular em diálogo com as novas situações históricas, deixando desabrochar
assim a sua eterna novidade.[98]
O relativismo prático
122. Um antropocentrismo desordenado
gera um estilo de vida desordenado. Na exortação apostólica Evangelii
gaudium, referi-me ao relativismo prático que caracteriza a
nossa época e que é «ainda mais perigoso que o doutrinal».[99] Quando o ser humano se coloca no
centro, acaba por dar prioridade absoluta aos seus interesses contingentes, e
tudo o mais se torna relativo. Por isso, não deveria surpreender que, juntamente
com a omnipresença do paradigma tecnocrático e a adoração do poder humano sem
limites, se desenvolva nos indivíduos este relativismo no qual tudo o que não
serve os próprios interesses imediatos se torna irrelevante. Nisto, há uma
lógica que permite compreender como se alimentam mutuamente diferentes
atitudes, que provocam ao mesmo tempo a degradação ambiental e a degradação
social.
123.
A cultura do relativismo é a mesma patologia que impele uma pessoa a
aproveitar-se de outra e a tratá-la como mero objecto, obrigando-a a trabalhos
forçados, ou reduzindo-a à escravidão por causa duma dívida. É a mesma lógica
que leva à exploração sexual das crianças, ou ao abandono dos idosos que não
servem os interesses próprios. É também a lógica interna daqueles que dizem:
«Deixemos que as forças invisíveis do mercado regulem a economia, porque os
seus efeitos sobre a sociedade e a natureza são danos inevitáveis». Se não há
verdades objectivas nem princípios estáveis, fora da satisfação das aspirações
próprias e das necessidades imediatas, que limites pode haver para o tráfico de
seres humanos, a criminalidade organizada, o narcotráfico, o comércio de
diamantes ensanguentados e de peles de animais em vias de extinção? Não é a
mesma lógica relativista a que justifica a compra de órgãos dos pobres com a
finalidade de os vender ou utilizar para experimentação, ou o descarte de
crianças porque não correspondem ao desejo de seus pais? É a mesma lógica do
«usa e joga fora» que produz tantos resíduos, só pelo desejo desordenado de
consumir mais do que realmente se tem necessidade. Portanto, não podemos pensar
que os programas políticos ou a força da lei sejam suficientes para evitar os
comportamentos que afectam o meio ambiente, porque, quando é a cultura que se
corrompe deixando de reconhecer qualquer verdade objectiva ou quaisquer
princípios universalmente válidos, as leis só se poderão entender como
imposições arbitrárias e obstáculos a evitar.
A necessidade de defender o trabalho
124. Em qualquer abordagem de
ecologia integral que não exclua o ser humano, é indispensável incluir o valor
do trabalho, tão sabiamente desenvolvido por São João Paulo II na
sua encíclica Laborem
excercens. Recordemos que, segundo a narração bíblica da
criação, Deus colocou o ser humano no jardim recém-criado (cf. Gn2,
15), não só para cuidar do existente (guardar), mas também para trabalhar nele
a fim de que produzisse frutos (cultivar). Assim, os operários e os artesãos
«asseguram uma criação perpétua» (Sir 38, 34). Na realidade, a
intervenção humana que favorece o desenvolvimento prudente da criação é a forma
mais adequada de cuidar dela, porque implica colocar-se como instrumento de
Deus para ajudar a fazer desabrochar as potencialidades que Ele mesmo inseriu
nas coisas: «O Senhor produziu da terra os medicamentos; e o homem sensato não
os desprezará» (Sir 38, 4).
125.
Se procurarmos pensar quais possam ser as relações adequadas do ser humano com
o mundo que o rodeia, surge a necessidade duma concepção correcta do trabalho,
porque, falando da relação do ser humano com as coisas, impõe-se-nos a questão
relativa ao sentido e finalidade da acção humana sobre a realidade. Não falamos
apenas do trabalho manual ou do trabalho da terra, mas de qualquer actividade
que implique alguma transformação do existente, desde a elaboração dum balanço
social até ao projecto dum progresso tecnológico. Qualquer forma de trabalho
pressupõe uma concepção sobre a relação que o ser humano pode ou deve
estabelecer com o outro diverso de si mesmo. A espiritualidade cristã, a par da
admiração contemplativa das criaturas que encontramos em São Francisco de
Assis, desenvolveu também uma rica e sadia compreensão do trabalho, como
podemos encontrar, por exemplo, na vida do Beato Carlos de Foucauld e seus
discípulos.
126. Algo se pode recolher também da
longa tradição monástica. Nos primórdios, esta favorecia de certo modo a fuga
do mundo, procurando afastar-se da decadência urbana. Por isso, os monges
buscavam o deserto, convencidos de que fosse o lugar adequado para reconhecer a
presença de Deus. Mais tarde, São Bento de Núrsia quis que os seus monges
vivessem em comunidade, unindo oração e estudo com o trabalho manual («Ora
et labora»). Esta introdução do trabalho manual impregnada de sentido
espiritual revelou-se revolucionária. Aprendeu-se a buscar o amadurecimento e a
santificação na compenetração entre o recolhimento e o trabalho. Esta maneira
de viver o trabalho torna-nos mais capazes de ter cuidado e respeito pelo meio
ambiente, impregnando de sadia sobriedade a nossa relação com o mundo.
127. Afirmamos que «o homem é o
protagonista, o centro e o fim de toda a vida económico-social».[100] Apesar disso, quando no ser humano
se deteriora a capacidade de contemplar e respeitar, criam-se as condições para
se desfigurar o sentido do trabalho.[101] Convém recordar sempre que o ser
humano é «capaz de, por si próprio, ser o agente responsável do seu bem-estar
material, progresso moral e desenvolvimento espiritual».[102] O trabalho deveria ser o âmbito
deste multiforme desenvolvimento pessoal, onde estão em jogo muitas dimensões
da vida: a criatividade, a projectação do futuro, o desenvolvimento das
capacidades, a exercitação dos valores, a comunicação com os outros, uma
atitude de adoração. Por isso, a realidade social do munda actual exige que,
acima dos limitados interesses das empresas e duma discutível racionalidade
económica, «se continue a perseguir como prioritário o objectivo do
acesso ao trabalho para todos».[103]
128. Somos chamados ao trabalho desde
a nossa criação. Não se deve procurar que o progresso tecnológico substitua
cada vez mais o trabalho humano: procedendo assim, a humanidade
prejudicar-se-ia a si mesma. O trabalho é uma necessidade, faz parte do sentido
da vida nesta terra, é caminho de maturação, desenvolvimento humano e
realização pessoal. Neste sentido, ajudar os pobres com o dinheiro deve ser
sempre um remédio provisório para enfrentar emergências. O verdadeiro objectivo
deveria ser sempre consentir-lhes uma vida digna através do trabalho. Mas a
orientação da economia favoreceu um tipo de progresso tecnológico cuja
finalidade é reduzir os custos de produção com base na diminuição dos postos de
trabalho, que são substituídos por máquinas. É mais um exemplo de como a acção
do homem se pode voltar contra si mesmo. A diminuição dos postos de trabalho
«tem também um impacto negativo no plano económico com a progressiva corrosão
do “capital social”, isto é, daquele conjunto de relações de confiança, de
credibilidade, de respeito das regras, indispensável em qualquer convivência
civil».[104] Em suma, «os custos humanos são
sempre também custos económicos, e as disfunções económicas acarretam
sempre também custos humanos».[105]Renunciar a investir nas pessoas para se
obter maior receita imediata é um péssimo negócio para a sociedade.
129. Para se conseguir continuar a
dar emprego, é indispensável promover uma economia que favoreça a
diversificação produtiva e a criatividade empresarial. Por exemplo, há uma
grande variedade de sistemas alimentares rurais de pequena escala que continuam
a alimentar a maior parte da população mundial, utilizando uma porção reduzida
de terreno e de água e produzindo menos resíduos, quer em pequenas parcelas
agrícolas e hortas, quer na caça e recolha de produtos silvestres, quer na
pesca artesanal. As economias de larga escala, especialmente no sector
agrícola, acabam por forçar os pequenos agricultores a vender as suas terras ou
a abandonar as suas culturas tradicionais. As tentativas feitas por alguns
deles no sentido de desenvolverem outras formas de produção, mais
diversificadas, resultam inúteis por causa da dificuldade de ter acesso aos
mercados regionais e globais, ou porque a infra-estrutura de venda e transporte
está ao serviço das grandes empresas. As autoridades têm o direito e a
responsabilidade de adoptar medidas de apoio claro e firme aos pequenos
produtores e à diversificação da produção. Às vezes, para que haja uma
liberdade económica da qual todos realmente beneficiem, pode ser necessário pôr
limites àqueles que detêm maiores recursos e poder financeiro. A simples
proclamação da liberdade económica, enquanto as condições reaisimpedem
que muitos possam efectivamente ter acesso a ela e, ao mesmo tempo, se reduz o
acesso ao trabalho, torna-se um discurso contraditório que desonra a política.
A actividade empresarial, que é uma nobre vocação orientada para produzir
riqueza e melhorar o mundo para todos, pode ser uma maneira muito fecunda de
promover a região onde instala os seus empreendimentos, sobretudo se pensa que
a criação de postos de trabalho é parte imprescindível do seu serviço ao bem
comum.
A inovação biológica a partir da
pesquisa
130. Na visão filosófica e teológica
do ser humano e da criação que procurei propor, aparece claro que a pessoa
humana, com a peculiaridade da sua razão e da sua sabedoria, não é um factor
externo que deva ser totalmente excluído. No entanto, embora o ser humano possa
intervir no mundo vegetal e animal e fazer uso dele quando é necessário para a
sua vida, o Catecismo ensina
que as experimentações sobre os animais só são legítimas «desde que não
ultrapassem os limites do razoável e contribuam para curar ou poupar vidas
humanas».[106] Recorda, com firmeza, que o poder
humano tem limites e que «é contrário à dignidade humana fazer sofrer
inutilmente os animais e dispor indiscriminadamente das suas vidas».[107] Todo o uso e experimentação «exige
um respeito religioso pela integridade da criação».[108]
131. Quero recolher aqui a posição
equilibrada de São João Paulo II,
pondo em destaque os benefícios dos progressos científicos e tecnológicos, que
«manifestam quanto é nobre a vocação do homem para participar de modo
responsável na acção criadora de Deus», mas ao mesmo tempo recordava que «toda
e qualquer intervenção numa área determinada do ecossistema não pode prescindir
da consideração das suas consequências noutras áreas».[109] Afirmava que a Igreja aprecia a
contribuição «do estudo e das aplicações da biologia molecular, completada por
outras disciplinas como a genética e a sua aplicação tecnológica na agricultura
e na indústria»,[110]embora dissesse também que isto não deve
levar a uma «indiscriminada manipulação genética»[111] que ignore os efeitos negativos
destas intervenções. Não é possível frenar a criatividade humana. Se não se
pode proibir a um artista que exprima a sua capacidade criativa, também não se
pode obstaculizar quem possui dons especiais para o progresso científico e
tecnológico, cujas capacidades foram dadas por Deus para o serviço dos outros.
Ao mesmo tempo, não se pode deixar de considerar os objectivos, os efeitos, o
contexto e os limites éticos de tal actividade humana que é uma forma de poder
com grandes riscos.
132. Neste quadro, deveria situar-se
toda e qualquer reflexão acerca da intervenção humana sobre o mundo vegetal e
animal que implique hoje mutações genéticas geradas pela biotecnologia, a fim
de aproveitar as possibilidades presentes na realidade material. O respeito da
fé pela razão pede para se prestar atenção àquilo que a própria ciência
biológica, desenvolvida independentemente dos interesses económicos, possa
ensinar a propósito das estruturas biológicas e das suas possibilidades e
mutações. Em todo o caso, é legítima uma intervenção que actue sobre a natureza
«para a ajudar a desenvolver-se na sua própria linha, a da criação, querida por
Deus».[112]
133.
É difícil emitir um juízo geral sobre o desenvolvimento de organismos
modificados geneticamente (OMG), vegetais ou animais, para fins medicinais ou
agro-pecuários, porque podem ser muito diferentes entre si e requerer distintas
considerações. Além disso, os riscos nem sempre se devem atribuir à própria
técnica, mas à sua aplicação inadequada ou excessiva. Na realidade, muitas
vezes as mutações genéticas foram e continuam a ser produzidas pela própria
natureza. E mesmo as provocadas pelo ser humano não são um fenómeno moderno. A
domesticação de animais, o cruzamento de espécies e outras práticas antigas e
universalmente seguidas podem incluir-se nestas considerações. É oportuno
recordar que o início dos progressos científicos sobre cereais transgénicos foi
a observação de bactérias que, de forma natural e espontânea, produziam uma
modificação no genoma dum vegetal. Mas, na natureza, estes processos têm um
ritmo lento, que não se compara com a velocidade imposta pelos avanços
tecnológicos actuais, mesmo quando estes avanços se baseiam num desenvolvimento
científico de vários séculos.
134. Embora não disponhamos de provas
definitivas acerca do dano que poderiam causar os cereais transgénicos aos
seres humanos e apesar de, nalgumas regiões, a sua utilização ter produzido um
crescimento económico que contribuiu para resolver determinados problemas, há
dificuldades importantes que não devem ser minimizadas. Em muitos lugares, na
sequência da introdução destas culturas, constata-se uma concentração de terras
produtivas nas mãos de poucos, devido ao «progressivo desaparecimento de
pequenos produtores, que, em consequência da perda das terras cultivadas, se
viram obrigados a retirar-se da produção directa».[113] Os mais frágeis deles tornam-se
trabalhadores precários, e muitos assalariados agrícolas acabam por emigrar
para miseráveis aglomerados das cidades. A expansão destas culturas destrói a
complexa trama dos ecossistemas, diminui a diversidade na produção e afecta o
presente ou o futuro das economias regionais. Em vários países, nota-se uma
tendência para o desenvolvimento de oligopólios na produção de sementes e
outros produtos necessários para o cultivo, e a dependência agrava-se quando se
pensa na produção de sementes estéreis que acabam por obrigar os agricultores a
comprá-las às empresas produtoras.
135.
Sem dúvida, há necessidade duma atenção constante, que tenha em consideração
todos os aspectos éticos implicados. Para isso, é preciso assegurar um debate
científico e social que seja responsável e amplo, capaz de considerar toda a
informação disponível e chamar as coisas pelo seu nome. Às vezes não se coloca
sobre a mesa a informação completa, mas é seleccionada de acordo com os
próprios interesses, sejam eles políticos, económicos ou ideológicos. Isto
torna difícil elaborar um juízo equilibrado e prudente sobre as várias
questões, tendo presente todas as variáveis em jogo. É necessário dispor de
espaços de debate, onde todos aqueles que poderiam de algum modo ver-se,
directa ou indirectamente, afectados (agricultores, consumidores, autoridades,
cientistas, produtores de sementes, populações vizinhas dos campos tratados e
outros) tenham possibilidade de expor as suas problemáticas ou ter acesso a uma
informação ampla e fidedigna para adoptar decisões tendentes ao bem comum
presente e futuro. A questão dos OMG é uma questão de carácter complexo, que
requer ser abordada com um olhar abrangente de todos os aspectos; isto exigiria
pelo menos um maior esforço para financiar distintas linhas de pesquisa
autónoma e interdisciplinar que possam trazer nova luz.
136.
Além disso, é preocupante constatar que alguns movimentos ecologistas defendem
a integridade do meio ambiente e, com razão, reclamam a imposição de
determinados limites à pesquisa científica, mas não aplicam estes mesmos
princípios à vida humana. Muitas vezes justifica-se que se ultrapassem todos os
limites, quando se faz experiências com embriões humanos vivos. Esquece-se que
o valor inalienável do ser humano é independente do seu grau de
desenvolvimento. Aliás, quando a técnica ignora os grandes princípios éticos,
acaba por considerar legítima qualquer prática. Como vimos neste capítulo, a
técnica separada da ética dificilmente será capaz de autolimitar o seu poder.
CAPÍTULO
IV
UMA ECOLOGIA INTEGRAL
137. Dado que tudo está intimamente
relacionado e que os problemas actuais requerem um olhar que tenha em conta
todos os aspectos da crise mundial, proponho que nos detenhamos agora a
reflectir sobre os diferentes elementos duma ecologia integral, que
inclua claramente as dimensões humanas e sociais.
1. Ecologia ambiental, económica e
social
138.
A ecologia estuda as relações entre os organismos vivos e o meio ambiente onde
se desenvolvem. E isto exige sentar-se a pensar e discutir acerca das condições
de vida e de sobrevivência duma sociedade, com a honestidade de pôr em questão
modelos de desenvolvimento, produção e consumo. Nunca é demais insistir que
tudo está interligado. O tempo e o espaço não são independentes entre si; nem
os próprios átomos ou as partículas subatómicas se podem considerar
separadamente. Assim como os vários componentes do planeta – físicos, químicos
e biológicos – estão relacionados entre si, assim também as espécies vivas
formam uma trama que nunca acabaremos de individuar e compreender. Boa parte da
nossa informação genética é partilhada com muitos seres vivos. Por isso, os
conhecimentos fragmentários e isolados podem tornar-se uma forma de ignorância,
quando resistem a integrar-se numa visão mais ampla da realidade.
139.
Quando falamos de «meio ambiente», fazemos referência também a uma particular
relação: a relação entre a natureza e a sociedade que a habita. Isto impede-nos
de considerar a natureza como algo separado de nós ou como uma mera moldura da
nossa vida. Estamos incluídos nela, somos parte dela e compenetramo-nos. As
razões, pelas quais um lugar se contamina, exigem uma análise do funcionamento
da sociedade, da sua economia, do seu comportamento, das suas maneiras de
entender a realidade. Dada a amplitude das mudanças, já não é possível
encontrar uma resposta específica e independente para cada parte do problema. É
fundamental buscar soluções integrais que considerem as interacções dos
sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais. Não há duas crises
separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise
sócio-ambiental. As directrizes para a solução requerem uma abordagem integral
para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente,
cuidar da natureza.
140.
Devido à quantidade e variedade de elementos a ter em conta na hora de
determinar o impacto ambiental dum empreendimento concreto, torna-se
indispensável dar aos pesquisadores um papel preponderante e facilitar a sua
interacção com uma ampla liberdade académica. Esta pesquisa constante deveria
permitir reconhecer também como as diferentes criaturas se relacionam, formando
aquelas unidades maiores que hoje chamamos «ecossistemas». Temo-los em conta
não só para determinar qual é o seu uso razoável, mas também porque possuem um
valor intrínseco, independente de tal uso. Assim como cada organismo é bom e
admirável em si mesmo pelo facto de ser uma criatura de Deus, o mesmo se pode
dizer do conjunto harmónico de organismos num determinado espaço, funcionando
como um sistema. Embora não tenhamos consciência disso, dependemos desse
conjunto para a nossa própria existência. Convém recordar que os ecossistemas
intervêm na retenção do anidrido carbónico, na purificação da água, na
contraposição a doenças e pragas, na composição do solo, na decomposição dos
resíduos, e muitíssimos outros serviços que esquecemos ou ignoramos. Quando se
dão conta disto, muitas pessoas voltam a tomar consciência de que vivemos e
agimos a partir duma realidade que nos foi previamente dada, que é anterior às
nossas capacidades e à nossa existência. Por isso, quando se fala de «uso
sustentável», é preciso incluir sempre uma consideração sobre a capacidade
regenerativa de cada ecossistema nos seus diversos sectores e aspectos.
141. Além disso, o crescimento
económico tende a gerar automatismos e a homogeneizar, a fim de simplificar os
processos e reduzir os custos. Por isso, é necessária uma ecologia económica,
capaz de induzir a considerar a realidade de forma mais ampla. Com efeito, «a
protecção do meio ambiente deverá constituir parte integrante do processo de
desenvolvimento e não poderá ser considerada isoladamente».[114] Mas, ao mesmo tempo, torna-se
actual a necessidade imperiosa do humanismo, que faz apelo aos distintos
saberes, incluindo o económico, para uma visão mais integral e integradora.
Hoje, a análise dos problemas ambientais é inseparável da análise dos contextos
humanos, familiares, laborais, urbanos, e da relação de cada pessoa consigo
mesma, que gera um modo específico de se relacionar com os outros e com o meio
ambiente. Há uma interacção entre os ecossistemas e entre os diferentes mundos
de referência social e, assim, se demonstra mais uma vez que «o todo é superior
à parte».[115]
142. Se tudo está relacionado, também
o estado de saúde das instituições duma sociedade tem consequências no ambiente
e na qualidade de vida humana: «toda a lesão da solidariedade e da amizade
cívica provoca danos ambientais».[116] Neste sentido, a ecologia social é
necessariamente institucional e progressivamente alcança as diferentes
dimensões, que vão desde o grupo social primário, a família, até à vida
internacional, passando pela comunidade local e a nação. Dentro de cada um dos
níveis sociais e entre eles, desenvolvem-se as instituições que regulam as
relações humanas. Tudo o que as danifica comporta efeitos nocivos, como a perda
da liberdade, a injustiça e a violência. Vários países são governados por um
sistema institucional precário, à custa do sofrimento do povo e para benefício
daqueles que lucram com este estado de coisas. Tanto dentro da administração do
Estado, como nas diferentes expressões da sociedade civil, ou nas relações dos
habitantes entre si, registam-se, com demasiada frequência, comportamentos
ilegais. As leis podem estar redigidas de forma correcta, mas muitas vezes
permanecem letra morta. Poder-se-á, assim, esperar que a legislação e as
normativas relativas ao meio ambiente sejam realmente eficazes? Sabemos, por
exemplo, que países dotados duma legislação clara sobre a protecção das
florestas continuam a ser testemunhas mudas da sua frequente violação. Além
disso, o que acontece numa região influi, directa ou indirectamente, nas outras
regiões. Assim, por exemplo, o consumo de drogas nas sociedades opulentas
provoca uma constante ou crescente procura de produtos que provêm de regiões
empobrecidas, onde se corrompem comportamentos, se destroem vidas e se acaba
por degradar o meio ambiente.
2. Ecologia cultural
143.
A par do património natural, encontra-se igualmente ameaçado um património
histórico, artístico e cultural. Faz parte da identidade comum de um lugar,
servindo de base para construir uma cidade habitável. Não se trata de destruir
e criar novas cidades hipoteticamente mais ecológicas, onde nem sempre resulta
desejável viver. É preciso integrar a história, a cultura e a arquitectura dum
lugar, salvaguardando a sua identidade original. Por isso, a ecologia envolve
também o cuidado das riquezas culturais da humanidade, no seu sentido mais
amplo. Mais directamente, pede que se preste atenção às culturas locais, quando
se analisam questões relacionadas com o meio ambiente, fazendo dialogar a
linguagem técnico-científica com a linguagem popular. É a cultura – entendida
não só como os monumentos do passado, mas especialmente no seu sentido vivo,
dinâmico e participativo – que não se pode excluir na hora de repensar a
relação do ser humano com o meio ambiente.
144. A visão consumista do ser
humano, incentivada pelos mecanismos da economia globalizada actual, tende a
homogeneizar as culturas e a debilitar a imensa variedade cultural, que é um
tesouro da humanidade. Por isso, pretender resolver todas as dificuldades
através de normativas uniformes ou por intervenções técnicas, leva a
negligenciar a complexidade das problemáticas locais, que requerem a
participação activa dos habitantes. Os novos processos em gestação nem sempre
se podem integrar dentro de modelos estabelecidos do exterior, mas hão-de ser
provenientes da própria cultura local. Assim como a vida e o mundo são
dinâmicos, assim também o cuidado do mundo deve ser flexível e dinâmico. As
soluções meramente técnicas correm o risco de tomar em consideração sintomas
que não correspondem às problemáticas mais profundas. É preciso assumir a
perspectiva dos direitos dos povos e das culturas, dando assim provas de
compreender que o desenvolvimento dum grupo social supõe um processo histórico
no âmbito dum contexto cultural e requer constantemente o protagonismo dos actores
sociais locais a partir da sua própria cultura. Nem mesmo a noção
da qualidade de vida se pode impor, mas deve ser entendida dentro do mundo de
símbolos e hábitos próprios de cada grupo humano.
145.
Muitas formas de intensa exploração e degradação do meio ambiente podem esgotar
não só os meios locais de subsistência, mas também os recursos sociais que
consentiram um modo de viver que sustentou, durante longo tempo, uma identidade
cultural e um sentido da existência e da convivência social. O desaparecimento
duma cultura pode ser tanto ou mais grave do que o desaparecimento duma espécie
animal ou vegetal. A imposição dum estilo hegemónico de vida ligado a um modo
de produção pode ser tão nocivo como a alteração dos ecossistemas.
146.
Neste sentido, é indispensável prestar uma atenção especial às comunidades
aborígenes com as suas tradições culturais. Não são apenas uma minoria entre
outras, mas devem tornar-se os principais interlocutores, especialmente quando
se avança com grandes projectos que afectam os seus espaços. Com efeito, para
eles, a terra não é um bem económico, mas dom gratuito de Deus e dos
antepassados que nela descansam, um espaço sagrado com o qual precisam de
interagir para manter a sua identidade e os seus valores. Eles, quando permanecem
nos seus territórios, são quem melhor os cuida. Em várias partes do mundo,
porém, são objecto de pressões para que abandonem suas terras e as deixem
livres para projectos extractivos e agro-pecuários que não prestam atenção à
degradação da natureza e da cultura.
3. Ecologia da vida quotidiana
147.
Para se poder falar de autêntico progresso, será preciso verificar que se
produza uma melhoria global na qualidade de vida humana; isto implica analisar
o espaço onde as pessoas transcorrem a sua existência. Os ambientes onde
vivemos influem sobre a nossa maneira de ver a vida, sentir e agir. Ao mesmo
tempo, no nosso quarto, na nossa casa, no nosso lugar de trabalho e no nosso
bairro, usamos o ambiente para exprimir a nossa identidade. Esforçamo-nos por
nos adaptar ao ambiente e, quando este aparece desordenado, caótico ou cheio de
poluição visiva e acústica, o excesso de estímulos põe à prova as nossas
tentativas de desenvolver uma identidade integrada e feliz.
148.
Admirável é a criatividade e generosidade de pessoas e grupos que são capazes
de dar a volta às limitações do ambiente, modificando os efeitos adversos dos
condicionalismos e aprendendo a orientar a sua existência no meio da desordem e
precariedade. Por exemplo, nalguns lugares onde as fachadas dos edifícios estão
muito deterioradas, há pessoas que cuidam com muita dignidade o interior das
suas habitações, ou que se sentem bem pela cordialidade e amizade das pessoas.
A vida social positiva e benfazeja dos habitantes enche de luz um ambiente à
primeira vista inabitável. É louvável a ecologia humana que os pobres conseguem
desenvolver, no meio de tantas limitações. A sensação de sufocamento, produzida
pelos aglomerados residenciais e pelos espaços com alta densidade populacional,
é contrastada se se desenvolvem calorosas relações humanas de vizinhança, se se
criam comunidades, se as limitações ambientais são compensadas na interioridade
de cada pessoa que se sente inserida numa rede de comunhão e pertença. Deste
modo, qualquer lugar deixa de ser um inferno e torna-se o contexto duma vida
digna.
149. Inversamente está provado que a
penúria extrema vivida nalguns ambientes privados de harmonia, magnanimidade e
possibilidade de integração, facilita o aparecimento de comportamentos
desumanos e a manipulação das pessoas por organizações criminosas. Para os
habitantes de bairros periféricos muito precários, a experiência diária de
passar da superlotação ao anonimato social, que se vive nas grandes cidades,
pode provocar uma sensação de desenraizamento que favorece comportamentos
anti-sociais e violência. Todavia tenho a peito reiterar que o amor é mais
forte. Muitas pessoas, nestas condições, são capazes de tecer laços de pertença
e convivência que transformam a superlotação numa experiência comunitária, onde
se derrubam os muros do eu e superam as barreiras do egoísmo. Esta experiência
de salvação comunitária é o que muitas vezes suscita reacções criativas para
melhorar um edifício ou um bairro.[117]
150.
Dada a relação entre os espaços urbanizados e o comportamento humano, aqueles
que projectam edifícios, bairros, espaços públicos e cidades precisam da
contribuição dos vários saberes que permitem compreender os processos, o
simbolismo e os comportamentos das pessoas. Não é suficiente a busca da beleza
no projecto, porque tem ainda mais valor servir outro tipo de beleza: a
qualidade de vida das pessoas, a sua harmonia com o ambiente, o encontro e
ajuda mútua. Por isso também, é tão importante que o ponto de vista dos
habitantes do lugar contribua sempre para a análise da planificação urbanista.
151.
É preciso cuidar dos espaços comuns, dos marcos visuais e das estruturas
urbanas que melhoram o nosso sentido de pertença, a nossa sensação de
enraizamento, o nosso sentimento de «estar em casa» dentro da cidade que nos
envolve e une. É importante que as diferentes partes duma cidade estejam bem
integradas e que os habitantes possam ter uma visão de conjunto em vez de se
encerrarem num bairro, renunciando a viver a cidade inteira como um espaço
próprio partilhado com os outros. Toda a intervenção na paisagem urbana ou
rural deveria considerar que os diferentes elementos do lugar formam um todo,
sentido pelos habitantes como um contexto coerente com a sua riqueza de
significados. Assim, os outros deixam de ser estranhos e podemos senti-los como
parte de um «nós» que construímos juntos. Pela mesma razão, tanto no meio
urbano como no rural, convém preservar alguns espaços onde se evitem
intervenções humanas que os alterem constantemente.
152. A falta de habitação é grave em
muitas partes do mundo, tanto nas áreas rurais como nas grandes cidades,
nomeadamente porque os orçamentos estatais em geral cobrem apenas uma pequena
parte da procura. E não só os pobres, mas uma grande parte da sociedade
encontra sérias dificuldades para ter uma casa própria. A propriedade da casa
tem muita importância para a dignidade das pessoas e o desenvolvimento das
famílias. Trata-se duma questão central da ecologia humana. Se num lugar
concreto já se desenvolveram aglomerados caóticos de casas precárias, trata-se
primariamente de urbanizar estes bairros, não de erradicar e expulsar os
habitantes. Mas, quando os pobres vivem em subúrbios poluídos ou aglomerados
perigosos, «no caso de ter de se proceder à sua deslocação, para não
acrescentar mais sofrimento ao que já padecem, é necessário fornecer-lhes uma
adequada e prévia informação, oferecer-lhes alternativas de alojamentos dignos
e envolver directamente os interessados».[118]Ao mesmo tempo, a criatividade deveria
levar à integração dos bairros precários numa cidade acolhedora: «Como são
belas as cidades que superam a desconfiança doentia e integram os que são
diferentes, fazendo desta integração um novo factor de progresso! Como são
encantadoras as cidades que, já no seu projecto arquitectónico, estão cheias de
espaços que unem, relacionam, favorecem o reconhecimento do outro!»[119]
153.
Nas cidades, a qualidade de vida está largamente relacionada com os
transportes, que muitas vezes são causa de grandes tribulações para os
habitantes. Nelas, circulam muitos carros utilizados por uma ou duas pessoas,
pelo que o tráfico torna-se intenso, eleva-se o nível de poluição, consomem-se
enormes quantidades de energia não-renovável e torna-se necessário a construção
de mais estradas e parques de estacionamento que prejudicam o tecido urbano.
Muitos especialistas estão de acordo sobre a necessidade de dar prioridade ao
transporte público. Mas é difícil que algumas medidas consideradas necessárias
sejam pacificamente acolhidas pela sociedade, sem uma melhoria substancial do
referido transporte, que, em muitas cidades, comporta um tratamento indigno das
pessoas devido à superlotação, ao desconforto, ou à reduzida frequência dos
serviços e à insegurança.
154.
O reconhecimento da dignidade peculiar do ser humano contrasta frequentemente
com a vida caótica que têm de fazer as pessoas nas nossas cidades. Mas isto não
deveria levar a esquecer o estado de abandono e desleixo que sofrem também
alguns habitantes das áreas rurais, onde não chegam os serviços essenciais e há
trabalhadores reduzidos a situações de escravidão, sem direitos nem expectativas
duma vida mais dignificante.
155. A ecologia humana implica também
algo de muito profundo que é indispensável para se poder criar um ambiente mais
dignificante: a relação necessária da vida do ser humano com a lei moral
inscrita na sua própria natureza. Bento XVI dizia
que existe uma «ecologia do homem», porque «também o homem possui uma natureza,
que deve respeitar e não pode manipular como lhe apetece».[120] Nesta linha, é preciso reconhecer
que o nosso corpo nos põe em relação directa com o meio ambiente e com os
outros seres vivos. A aceitação do próprio corpo como dom de Deus é necessária
para acolher e aceitar o mundo inteiro como dom do Pai e casa comum; pelo
contrário, uma lógica de domínio sobre o próprio corpo transforma-se numa
lógica, por vezes subtil, de domínio sobre a criação. Aprender a aceitar o
próprio corpo, a cuidar dele e a respeitar os seus significados é essencial
para uma verdadeira ecologia humana. Também é necessário ter apreço pelo
próprio corpo na sua feminilidade ou masculinidade, para se poder reconhecer a
si mesmo no encontro com o outro que é diferente. Assim, é possível aceitar com
alegria o dom específico do outro ou da outra, obra de Deus criador, e
enriquecer-se mutuamente. Portanto, não é salutar um comportamento que pretenda
«cancelar a diferença sexual, porque já não sabe confrontar-se com ela».[121]
4. O princípio do bem comum
156. A ecologia humana é inseparável
da noção de bem comum, princípio este que desempenha um papel central e
unificador na ética social. É «o conjunto das condições da vida social que
permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente
a própria perfeição».[122]
157.
O bem comum pressupõe o respeito pela pessoa humana enquanto tal, com direitos
fundamentais e inalienáveis orientados para o seu desenvolvimento integral.
Exige também os dispositivos de bem-estar e segurança social e o
desenvolvimento dos vários grupos intermédios, aplicando o princípio da
subsidiariedade. Entre tais grupos, destaca-se de forma especial a família
enquanto célula basilar da sociedade. Por fim, o bem comum requer a paz social,
isto é, a estabilidade e a segurança de uma certa ordem, que não se realiza sem
uma atenção particular à justiça distributiva, cuja violação gera sempre violência.
Toda a sociedade – e, nela, especialmente o Estado – tem obrigação de defender
e promover o bem comum.
158. Nas condições actuais da
sociedade mundial, onde há tantas desigualdades e são cada vez mais numerosas
as pessoas descartadas, privadas dos direitos humanos fundamentais, o princípio
do bem comum torna-se imediatamente, como consequência lógica e inevitável, um
apelo à solidariedade e uma opção preferencial pelos mais pobres. Esta opção
implica tirar as consequências do destino comum dos bens da terra, mas – como
procurei mostrar na exortação apostólica Evangelii
gaudium[123] – exige acima de tudo contemplar a
imensa dignidade do pobre à luz das mais profundas convicções de fé. Basta
observar a realidade para compreender que, hoje, esta opção é uma exigência
ética fundamental para a efectiva realização do bem comum.
5. A justiça intergeneracional
159. A noção de bem comum engloba
também as gerações futuras. As crises económicas internacionais mostraram, de forma
atroz, os efeitos nocivos que traz consigo o desconhecimento de um destino
comum, do qual não podem ser excluídos aqueles que virão depois de nós. Já não
se pode falar de desenvolvimento sustentável sem uma solidariedade
intergeneracional. Quando pensamos na situação em que se deixa o planeta às
gerações futuras, entramos noutra lógica: a do dom gratuito, que recebemos e
comunicamos. Se a terra nos é dada, não podemos pensar apenas a partir dum
critério utilitarista de eficiência e produtividade para lucro individual. Não
estamos a falar duma atitude opcional, mas duma questão essencial de justiça,
pois a terra que recebemos pertence também àqueles que hão-de vir. Os bispos de
Portugal exortaram a assumir este dever de justiça: «O ambiente situa-se na lógica
da recepção. É um empréstimo que cada geração recebe e deve transmitir à
geração seguinte».[124]Uma ecologia integral possui esta
perspectiva ampla.
160.
Que tipo de mundo queremos deixar a quem vai suceder-nos, às crianças que estão
a crescer? Esta pergunta não toca apenas o meio ambiente de maneira isolada,
porque não se pode pôr a questão de forma fragmentária. Quando nos interrogamos
acerca do mundo que queremos deixar, referimo-nos sobretudo à sua orientação
geral, ao seu sentido, aos seus valores. Se não pulsa nelas esta pergunta de
fundo, não creio que as nossas preocupações ecológicas possam alcançar efeitos
importantes. Mas, se esta pergunta é posta com coragem, leva-nos
inexoravelmente a outras questões muito directas: Com que finalidade passamos
por este mundo? Para que viemos a esta vida? Para que trabalhamos e lutamos?
Que necessidade tem de nós esta terra? Por isso, já não basta dizer que devemos
preocupar-nos com as gerações futuras; exige-se ter consciência de que é a
nossa própria dignidade que está em jogo. Somos nós os primeiros interessados
em deixar um planeta habitável para a humanidade que nos vai suceder. Trata-se
de um drama para nós mesmos, porque isto chama em causa o significado da nossa
passagem por esta terra.
161.
As previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia. Às
próximas gerações, poderíamos deixar demasiadas ruínas, desertos e lixo. O
ritmo de consumo, desperdício e alteração do meio ambiente superou de tal
maneira as possibilidades do planeta, que o estilo de vida actual – por ser
insustentável – só pode desembocar em catástrofes, como aliás já está a
acontecer periodicamente em várias regiões. A atenuação dos efeitos do
desequilíbrio actual depende do que fizermos agora, sobretudo se pensarmos na
responsabilidade que nos atribuirão aqueles que deverão suportar as piores
consequências.
162. A dificuldade em levar a sério
este desafio tem a ver com uma deterioração ética e cultural, que acompanha a
deterioração ecológica. O homem e a mulher deste mundo pós-moderno correm o
risco permanente de se tornar profundamente individualistas, e muitos problemas
sociais de hoje estão relacionados com a busca egoísta duma satisfação
imediata, com as crises dos laços familiares e sociais, com as dificuldades em
reconhecer o outro. Muitas vezes há um consumo excessivo e míope dos pais que
prejudica os próprios filhos, que sentem cada vez mais dificuldade em comprar
casa própria e fundar uma família. Além disso esta falta de capacidade para
pensar seriamente nas futuras gerações está ligada com a nossa incapacidade de
alargar o horizonte das nossas preocupações e pensar naqueles que permanecem
excluídos do desenvolvimento. Não percamos tempo a imaginar os pobres do
futuro, é suficiente que recordemos os pobres de hoje, que poucos anos têm para
viver nesta terra e não podem continuar a esperar. Por isso, «para além de uma leal
solidariedade entre as gerações, há que reafirmar a urgente necessidade moral
de uma renovada solidariedade entre os indivíduos da mesma geração».[125]
CAPÍTULO
V
ALGUMAS LINHAS DE ORIENTAÇÃO E ACÇÃO
163.
Procurei examinar a situação actual da humanidade, tanto nas brechas do planeta
que habitamos, como nas causas mais profundamente humanas da degradação ambiental.
Embora esta contemplação da realidade em si mesma já nos indique a necessidade
duma mudança de rumo e sugira algumas acções, procuremos agora delinear grandes
percursos de diálogo que nos ajudem a sair da espiral de autodestruição onde
estamos a afundar.
1. O diálogo sobre o meio ambiente na
política internacional
164. Desde meados do século passado e
superando muitas dificuldades, foi-se consolidando a tendência de conceber o
planeta como pátria e a humanidade como povo que habita uma casa comum. Um
mundo interdependente não significa unicamente compreender que as consequências
danosas dos estilos de vida, produção e consumo afectam a todos, mas
principalmente procurar que as soluções sejam propostas a partir duma
perspectiva global e não apenas para defesa dos interesses de alguns países. A
interdependência obriga-nos a pensar num único mundo, num projecto
comum. Mas, a mesma inteligência que foi utilizada para um enorme
desenvolvimento tecnológico não consegue encontrar formas eficazes de gestão internacional
para resolver as graves dificuldades ambientais e sociais. Para enfrentar os
problemas de fundo, que não se podem resolver com acções de países isolados,
torna-se indispensável um consenso mundial que leve, por exemplo, a programar
uma agricultura sustentável e diversificada, desenvolver formas de energia
renováveis e pouco poluidoras, fomentar uma maior eficiência energética,
promover uma gestão mais adequada dos recursos florestais e marinhos, garantir
a todos o acesso à água potável.
165.
Sabemos que a tecnologia baseada nos combustíveis fósseis – altamente
poluentes, sobretudo o carvão mas também o petróleo e, em menor medida, o gás –
deve ser, progressivamente e sem demora, substituída. Enquanto aguardamos por
um amplo desenvolvimento das energias renováveis, que já deveria ter começado,
é legítimo optar pelo mal menor ou recorrer a soluções transitórias. Todavia,
na comunidade internacional, não se consegue suficiente acordo sobre a
responsabilidade de quem deve suportar os maiores custos da transição
energética. Nas últimas décadas, as questões ambientais deram origem a um amplo
debate público, que fez crescer na sociedade civil espaços de notável
compromisso e generosa dedicação. A política e a indústria reagem com lentidão,
longe de estar à altura dos desafios mundiais. Neste sentido, pode-se dizer
que, enquanto a humanidade do período pós-industrial talvez fique recordada
como uma das mais irresponsáveis da história, espera-se que a humanidade dos
inícios do século XXI possa ser lembrada por ter assumido com generosidade as
suas graves responsabilidades.
166.
O movimento ecológico mundial já percorreu um longo caminho, enriquecido pelo
esforço de muitas organizações da sociedade civil. Não seria possível
mencioná-las todas aqui, nem repassar a história das suas contribuições. Mas,
graças a tanta dedicação, as questões ambientais têm estado cada vez mais
presentes na agenda pública e tornaram-se um convite permanente a pensar a
longo prazo. Apesar disso, as cimeiras mundiais sobre o meio ambiente dos
últimos anos não corresponderam às expectativas, porque não alcançaram, por
falta de decisão política, acordos ambientais globais realmente significativos
e eficazes.
167. Dentre elas, há que recordar a
Cimeira da Terra, celebrada em 1992 no Rio de Janeiro. Lá se proclamou que «os
seres humanos constituem o centro das preocupações relacionadas com o
desenvolvimento sustentável».[126]Retomando alguns conteúdos da Declaração
de Estocolmo (1972), sancionou, entre outras coisas, a cooperação internacional
no cuidado do ecossistema de toda a terra, a obrigação de quem contaminar
assumir economicamente os custos derivados, o dever de avaliar o impacto
ambiental de toda e qualquer obra ou projecto. Propôs o objectivo de
estabilizar as concentrações de gases com efeito de estufa na atmosfera para
inverter a tendência do aquecimento global. Também elaborou uma agenda com um
programa de acção e uma convenção sobre biodiversidade, declarou princípios em
matéria florestal. Embora tal cimeira marcasse um passo em frente e fosse
verdadeiramente profética para a sua época, os acordos tiveram um baixo nível
de implementação, porque não se estabeleceram adequados mecanismos de controle,
revisão periódica e sanção das violações. Os princípios enunciados continuam a
requerer caminhos eficazes e ágeis de realização prática.
168.
Como experiências positivas, pode-se mencionar, por exemplo, a Convenção de
Basileia sobre os resíduos perigosos, com um sistema de notificação, níveis
estipulados e controles, e também a Convenção vinculante sobre o comércio
internacional das espécies da fauna e da flora selvagens ameaçadas de extinção,
que prevê missões de verificação do seu efectivo cumprimento. Graças à
Convenção de Viena para a protecção da camada de ozono e a respectiva
implementação através do Protocolo de Montreal e as suas emendas, o problema da
diminuição da referida camada parece ter entrado numa fase de solução.
169.
No cuidado da biodiversidade e no contraste à desertificação, os avanços foram
muito menos significativos. Relativamente às mudanças climáticas, os progressos
são, infelizmente, muito escassos. A redução de gases com efeito de estufa
requer honestidade, coragem e responsabilidade, sobretudo dos países mais
poderosos e mais poluentes. A Conferência das Nações Unidas sobre o
Desenvolvimento Sustentável, chamada Rio+20 (Rio de Janeiro 2012), emitiu uma
Declaração Final extensa mas ineficaz. As negociações internacionais não podem
avançar significativamente por causa das posições dos países que privilegiam os
seus interesses nacionais sobre o bem comum global. Aqueles que hão-de sofrer
as consequências que tentamos dissimular, recordarão esta falta de consciência
e de responsabilidade. Durante o período de elaboração desta encíclica, o
debate adquiriu particular intensidade. Nós, crentes, não podemos deixar de
rezar a Deus pela evolução positiva nos debates actuais, para que as gerações
futuras não sofram as consequências de demoras imprudentes.
170. Algumas das estratégias para a
baixa emissão de gases poluentes apostam na internacionalização dos custos
ambientais, com o perigo de impor aos países de menores recursos pesados
compromissos de redução de emissões comparáveis aos dos países mais
industrializados. A imposição destas medidas penaliza os países mais
necessitados de desenvolvimento. Assim, acrescenta-se uma nova injustiça sob a
capa do cuidado do meio ambiente. Como sempre, a corda quebra pelo ponto mais
fraco. Uma vez que os efeitos das mudanças climáticas se farão sentir durante
muito tempo, mesmo que agora sejam tomadas medidas rigorosas, alguns países com
escassos recursos precisarão de ajuda para se adaptar a efeitos que já estão a
produzir-se e afectam as suas economias. É verdade que há responsabilidades
comuns, mas diferenciadas, pelo simples motivo – como disseram os bispos da
Bolívia – que «os países que foram beneficiados por um alto grau de industrialização,
à custa duma enorme emissão de gases com efeito de estufa, têm maior
responsabilidade em contribuir para a solução dos problemas que causaram».[127]
171.
A estratégia de compra-venda de «créditos de emissão» pode levar a uma nova
forma de especulação, que não ajudaria a reduzir a emissão global de gases
poluentes. Este sistema parece ser uma solução rápida e fácil, com a aparência
dum certo compromisso com o meio ambiente, mas que não implica de forma alguma
uma mudança radical à altura das circunstâncias. Pelo contrário, pode tornar-se
um diversivo que permite sustentar o consumo excessivo de alguns países e
sectores.
172. Para os países pobres, as
prioridades devem ser a erradicação da miséria e o desenvolvimento social dos
seus habitantes; ao mesmo tempo devem examinar o nível escandaloso de consumo
de alguns sectores privilegiados da sua população e contrastar melhor a
corrupção. Sem dúvida, devem também desenvolver formas menos poluentes de
produção de energia, mas para isso precisam de contar com a ajuda dos países
que cresceram muito à custa da actual poluição do planeta. O aproveitamento
directo da energia solar, tão abundante, exige que se estabeleçam mecanismos e
subsídios tais, que os países em vias de desenvolvimento possam ter acesso à
transferência de tecnologias, assistência técnica e recursos financeiros, mas
sempre prestando atenção às condições concretas, pois «nem sempre se avalia
adequadamente a compatibilidade dos sistemas com o contexto para o qual são
projectados».[128] Os custos seriam baixos se
comparados com os riscos das mudanças climáticas. Em todo o caso, trata-se
primariamente duma decisão ética, fundada na solidariedade de todos os povos.
173.
Urgem acordos internacionais que se cumpram, dada a escassa capacidade das
instâncias locais para intervirem de maneira eficaz. As relações entre os
Estados devem salvaguardar a soberania de cada um, mas também estabelecer
caminhos consensuais para evitar catástrofes locais que acabariam por danificar
a todos. São necessários padrões reguladores globais que imponham obrigações e
impeçam acções inaceitáveis, como o facto de países poderosos descarregarem,
sobre outros países, resíduos e indústrias altamente poluentes.
174.
Mencionemos também o sistema de governança dos oceanos. Com efeito, embora
tenha havido várias convenções internacionais e regionais, a fragmentação e a
falta de severos mecanismos de regulamentação, controle e sanção acabam por
minar todos os esforços. O problema crescente dos resíduos marinhos e da
protecção das áreas marinhas para além das fronteiras nacionais continua a
representar um desafio especial. Em definitivo, precisamos de um acordo sobre
os regimes de governança para toda a gama dos chamados bens comuns globais.
175. A lógica que dificulta a tomada
de decisões drásticas para inverter a tendência ao aquecimento global é a mesma
que não permite cumprir o objectivo de erradicar a pobreza. Precisamos duma
reacção global mais responsável, que implique enfrentar, contemporaneamente, a
redução da poluição e o desenvolvimento dos países e regiões pobres. O século
XXI, mantendo um sistema de governança próprio de épocas passadas, assiste a
uma perda de poder dos Estados nacionais, sobretudo porque a dimensão
económico-financeira, de carácter transnacional, tende a prevalecer sobre a
política. Neste contexto, torna-se indispensável a maturação de instituições
internacionais mais fortes e eficazmente organizadas, com autoridades
designadas de maneira imparcial por meio de acordos entre os governos nacionais
e dotadas de poder de sancionar. Com afirmou Bento XVI,
na linha desenvolvida até agora pela doutrina social da Igreja, «para o governo
da economia mundial, para sanar as economias atingidas pela crise de modo a
prevenir o agravamento da mesma e consequentes maiores desequilíbrios, para
realizar um oportuno e integral desarmamento, a segurança alimentar e a paz,
para garantir a salvaguarda do ambiente e para regulamentar os fluxos
migratórios urge a presença de uma verdadeira Autoridade política mundial,
delineada já pelo meu predecessor, [São]João XXIII».[129] Nesta perspectiva, a diplomacia
adquire uma importância inédita, chamada a promover estratégias internacionais
para prevenir os problemas mais graves que acabam por afectar a todos.
2. O diálogo para novas políticas
nacionais e locais
176.
Há vencedores e vencidos não só entre os países, mas também dentro dos países
pobres, onde se devem identificar as diferentes responsabilidades. Por isso, as
questões relacionadas com o meio ambiente e com o desenvolvimento económico já
não se podem olhar apenas a partir das diferenças entre os países, mas exigem
que se preste atenção às políticas nacionais e locais.
177.
Perante a possibilidade duma utilização irresponsável das capacidades humanas,
são funções inadiáveis de cada Estado planificar, coordenar, vigiar e sancionar
dentro do respectivo território. Como pode a sociedade organizar e salvaguardar
o seu futuro num contexto de constantes inovações tecnológicas? Um factor que
actua como moderador efectivo é o direito, que estabelece as regras para as
condutas permitidas à luz do bem comum. Os limites que uma sociedade sã, madura
e soberana deve impor têm a ver com previsão e precaução, regulamentações
adequadas, vigilância sobre a aplicação das normas, contraste da corrupção,
acções de controle operacional sobre o aparecimento de efeitos não desejados
dos processos de produção, e oportuna intervenção perante riscos incertos ou
potenciais. Existe uma crescente jurisprudência que visa reduzir os efeitos
poluentes dos empreendimentos. Mas a estrutura política e institucional não
existe apenas para evitar malversações, mas para incentivar as boas práticas,
estimular a criatividade que busca novos caminhos, facilitar as iniciativas
pessoais e colectivas.
178. O drama duma política focalizada
nos resultados imediatos, apoiada também por populações consumistas, torna
necessário produzir crescimento a curto prazo. Respondendo a interesses
eleitorais, os governos não se aventuram facilmente a irritar a população com
medidas que possam afectar o nível de consumo ou pôr em risco investimentos
estrangeiros. A construção míope do poder frena a inserção duma agenda
ambiental com visão ampla na agenda pública dos governos. Esquece-se, assim,
que «o tempo é superior ao espaço»[130] e que sempre somos mais fecundos
quando temos maior preocupação por gerar processos do que por dominar espaços
de poder. A grandeza política mostra-se quando, em momentos difíceis, se
trabalha com base em grandes princípios e pensando no bem comum a longo prazo.
O poder político tem muita dificuldade em assumir este dever num projecto de
nação.
179.
Nalguns lugares, estão a desenvolver-se cooperativas para a exploração de
energias renováveis, que consentem o auto-abastecimento local e até mesmo a
venda da produção em excesso. Este exemplo simples indica que, enquanto a ordem
mundial existente se revela impotente para assumir responsabilidades, a
instância local pode fazer a diferença. Com efeito, aqui é possível gerar uma
maior responsabilidade, um forte sentido de comunidade, uma especial capacidade
de solicitude e uma criatividade mais generosa, um amor apaixonado pela própria
terra, tal como se pensa naquilo que se deixa aos filhos e netos. Estes valores
têm um enraizamento muito profundo nas populações aborígenes. Dado que o
direito por vezes se mostra insuficiente devido à corrupção, requer-se uma
decisão política sob pressão da população. A sociedade, através de organismos
não-governamentais e associações intermédias, deve forçar os governos a
desenvolver normativas, procedimentos e controles mais rigorosos. Se os
cidadãos não controlam o poder político – nacional, regional e municipal –,
também não é possível combater os danos ambientais. Além disso, as legislações
municipais podem ser mais eficazes, se houver acordos entre populações vizinhas
para sustentarem as mesmas políticas ambientais.
180.
Não se pode pensar em receitas uniformes, porque há problemas e limites
específicos de cada país ou região. Também é verdade que o realismo político
pode exigir medidas e tecnologias de transição, desde que estejam acompanhadas
pelo projecto e a aceitação de compromissos graduais vinculativos. Ao mesmo
tempo, porém, a nível nacional e local, há sempre muito que fazer, como, por
exemplo, promover formas de poupança energética. Isto implica favorecer
modalidades de produção industrial com a máxima eficiência energética e menor
utilização de matérias-primas, retirando do mercado os produtos pouco eficazes
do ponto de vista energético ou mais poluentes. Podemos mencionar também uma
boa gestão dos transportes ou técnicas de construção e restruturação de
edifícios que reduzam o seu consumo energético e o seu nível de poluição. Além
disso, a acção política local pode orientar-se para a alteração do consumo, o
desenvolvimento duma economia de resíduos e reciclagem, a protecção de
determinadas espécies e a programação duma agricultura diversificada com a
rotação de culturas. É possível favorecer a melhoria agrícola de regiões
pobres, através de investimentos em infra-estruturas rurais, na organização do
mercado local ou nacional, em sistemas de irrigação, no desenvolvimento de
técnicas agrícolas sustentáveis. Podem-se facilitar formas de cooperação ou de
organização comunitária que defendam os interesses dos pequenos produtores e
salvaguardem da predação os ecossistemas locais. É tanto o que se pode fazer!
181.
Indispensável é a continuidade, porque não se podem modificar as políticas
relativas às alterações climáticas e à protecção ambiental todas as vezes que
muda um governo. Os resultados requerem muito tempo e comportam custos imediatos
com efeitos que não poderão ser exibidos no período de vida dum governo. Por
isso, sem a pressão da população e das instituições, haverá sempre relutância a
intervir, e mais ainda quando houver urgências a resolver. Para um político,
assumir estas responsabilidades com os custos que implicam não corresponde à
lógica eficientista e imediatista actual da economia e da política, mas, se ele
tiver a coragem de o fazer, poderá novamente reconhecer a dignidade que Deus
lhe deu como pessoa e deixará, depois da sua passagem por esta história, um
testemunho de generosa responsabilidade. Importa dar um lugar preponderante a
uma política salutar, capaz de reformar as instituições, coordená-las e
dotá-las de bons procedimentos, que permitam superar pressões e inércias
viciosas. Todavia é preciso acrescentar que os melhores dispositivos acabam por
sucumbir, quando faltam as grandes metas, os valores, uma compreensão humanista
e rica de significado, capazes de conferir a cada sociedade uma orientação
nobre e generosa.
3. Diálogo e transparência nos
processos decisórios
182.
A previsão do impacto ambiental dos empreendimentos e projectos requer
processos políticos transparentes e sujeitos a diálogo, enquanto a corrupção,
que esconde o verdadeiro impacto ambiental dum projecto em troca de favores,
frequentemente leva a acordos ambíguos que fogem ao dever de informar e a um
debate profundo.
183.
Um estudo de impacto ambiental não deveria ser posterior à elaboração dum
projecto produtivo ou de qualquer política, plano ou programa. Há-de inserir-se
desde o princípio e elaborar-se de forma interdisciplinar, transparente e
independente de qualquer pressão económica ou política. Deve aparecer unido à
análise das condições de trabalho e dos possíveis efeitos na saúde física e
mental das pessoas, na economia local, na segurança. Assim os resultados
económicos poder-se-ão prever de forma mais realista, tendo em conta os
cenários possíveis e, eventualmente, antecipando a necessidade dum investimento
maior para resolver efeitos indesejáveis que possam ser corrigidos. É sempre
necessário alcançar consenso entre os vários actores sociais, que podem trazer
diferentes perspectivas, soluções e alternativas. Mas, no debate, devem ter um
lugar privilegiado os moradores locais, aqueles mesmos que se interrogam sobre
o que desejam para si e para os seus filhos e podem ter em consideração as
finalidades que transcendem o interesse económico imediato. É preciso abandonar
a ideia de «intervenções» sobre o meio ambiente, para dar lugar a políticas
pensadas e debatidas por todas as partes interessadas. A participação requer
que todos sejam adequadamente informados sobre os vários aspectos e os
diferentes riscos e possibilidades, e não se reduza à decisão inicial sobre um
projecto, mas implique também acções de controle ou monitoramento constante. É
necessário haver sinceridade e verdade nas discussões científicas e políticas,
sem se limitar a considerar o que é permitido ou não pela legislação.
184. Quando surgem eventuais riscos
para o meio ambiente que afectam o bem comum presente e futuro, esta situação
exige «que as decisões sejam baseadas num confronto entre riscos e benefícios
previsíveis para cada opção alternativa possível».[131]Isto vale sobretudo quando um projecto
pode causar um incremento na exploração dos recursos naturais, nas emissões ou
descargas, na produção de resíduos, ou então uma mudança significativa na
paisagem, no habitat de espécies protegidas ou num espaço público. Alguns
projectos, não apoiados por uma análise bem cuidada, podem afectar
profundamente a qualidade de vida dum lugar, devido a questões muito diferentes
entre si, como, por exemplo, uma poluição acústica não prevista, a redução do
horizonte visual, a perda de valores culturais, os efeitos do uso da energia
nuclear. A cultura consumista, que dá prioridade ao curto prazo e aos
interesses privados, pode favorecer análises demasiado rápidas ou consentir a
ocultação de informação.
185.
Em qualquer discussão sobre um empreendimento, dever-se-ia pôr uma série de
perguntas, para poder discernir se o mesmo levará a um desenvolvimento
verdadeiramente integral: Para que fim? Por qual motivo? Onde? Quando? De que
maneira? A quem ajuda? Quais são os riscos? A que preço? Quem paga as despesas
e como o fará? Neste exame, há questões que devem ter prioridade. Por exemplo,
sabemos que a água é um recurso escasso e indispensável, sendo um direito
fundamental que condiciona o exercício doutros direitos humanos. Isto está, sem
dúvida, acima de toda a análise de impacto ambiental duma região.
186. Na Declaração do Rio, de 1992,
afirma-se que, «quando existem ameaças de danos graves ou irreversíveis, a
falta de certezas científicas absolutas não poderá constituir um motivo para
adiar a adopção de medidas eficazes»[132] que impeçam a degradação do meio
ambiente. Este princípio de precaução permite a protecção dos mais fracos, que
dispõem de poucos meios para se defender e fornecer provas irrefutáveis. Se a
informação objectiva leva a prever um dano grave e irreversível, mesmo que não
haja uma comprovação indiscutível, seja o projecto que for deverá suspender-se
ou modificar-se. Assim, inverte-se o ónus da prova, já que, nestes casos, é
preciso fornecer uma demonstração objectiva e contundente de que a actividade
proposta não vai gerar danos graves ao meio ambiente ou às pessoas que nele
habitam.
187.
Isto não implica opor-se a toda e qualquer inovação tecnológica que permita
melhorar a qualidade de vida duma população. Mas, em todo o caso, deve permanecer
de pé que a rentabilidade não pode ser o único critério a ter em conta e, na
hora em que aparecessem novos elementos de juízo a partir de ulteriores dados
informativos, deveria haver uma nova avaliação com a participação de todas as
partes interessadas. O resultado do debate pode ser a decisão de não avançar
num projecto, mas poderia ser também a sua modificação ou a elaboração de
propostas alternativas.
188.
Há discussões sobre problemas relativos ao meio ambiente, onde é difícil chegar
a um consenso. Repito uma vez mais que a Igreja não pretende definir as
questões científicas nem substituir-se à política, mas convido a um debate
honesto e transparente, para que as necessidades particulares ou as ideologias
não lesem o bem comum.
4. Política e economia em diálogo
para a plenitude humana
189. A política não deve submeter-se
à economia, e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista
da tecnocracia. Pensando no bem comum, hoje precisamos imperiosamente que a
política e a economia, em diálogo, se coloquem decididamente ao serviço da
vida, especialmente da vida humana. A salvação dos bancos a todo o custo,
fazendo pagar o preço à população, sem a firme decisão de rever e reformar o
sistema inteiro, reafirma um domínio absoluto da finança que não tem futuro e
só poderá gerar novas crises depois duma longa, custosa e aparente cura. A
crise financeira dos anos 2007 e 2008 era a ocasião para o desenvolvimento duma
nova economia mais atenta aos princípios éticos e para uma nova regulamentação da
actividade financeira especulativa e da riqueza virtual. Mas não houve uma
reacção que fizesse repensar os critérios obsoletos que continuam a governar o
mundo. A produção não é sempre racional, e muitas vezes está ligada a variáveis
económicas que atribuem aos produtos um valor que não corresponde ao seu valor
real. Isto leva frequentemente a uma superprodução dalgumas mercadorias, com um
impacto ambiental desnecessário, que simultaneamente danifica muitas economias
regionais.[133]Habitualmente, a bolha financeira é
também uma bolha produtiva. Em suma, o que não se enfrenta com energia é o
problema da economia real, aquela que torna possível, por exemplo, que se
diversifique e melhore a produção, que as empresas funcionem adequadamente, que
as pequenas e médias empresas se desenvolvam e criem postos de trabalho.
190. Neste contexto, sempre se deve
recordar que «a protecção ambiental não pode ser assegurada somente com base no
cálculo financeiro de custos e benefícios. O ambiente é um dos bens que os
mecanismos de mercado não estão aptos a defender ou a promover adequadamente».[134] Mais uma vez repito que convém
evitar uma concepção mágica do mercado, que tende a pensar que os problemas se
resolvem apenas com o crescimento dos lucros das empresas ou dos indivíduos.
Será realista esperar que quem está obcecado com a maximização dos lucros se
detenha a considerar os efeitos ambientais que deixará às próximas gerações?
Dentro do esquema do ganho não há lugar para pensar nos ritmos da natureza, nos
seus tempos de degradação e regeneração, e na complexidade dos ecossistemas que
podem ser gravemente alterados pela intervenção humana. Além disso, quando se
fala de biodiversidade, no máximo pensa-se nela como um reservatório de
recursos económicos que poderia ser explorado, mas não se considera seriamente
o valor real das coisas, o seu significado para as pessoas e as culturas, os
interesses e as necessidades dos pobres.
191.
Quando se colocam estas questões, alguns reagem acusando os outros de pretender
parar, irracionalmente, o progresso e o desenvolvimento humano. Mas temos de
nos convencer que, reduzir um determinado ritmo de produção e consumo, pode dar
lugar a outra modalidade de progresso e desenvolvimento. Os esforços para um
uso sustentável dos recursos naturais não são gasto inútil, mas um investimento
que poderá proporcionar outros benefícios económicos a médio prazo. Se não
temos vista curta, podemos descobrir que pode ser muito rentável a
diversificação duma produção mais inovadora e com menor impacto ambiental.
Trata-se de abrir caminho a oportunidades diferentes, que não implicam frenar a
criatividade humana nem o seu sonho de progresso, mas orientar esta energia por
novos canais.
192.
Por exemplo, um percurso de desenvolvimento produtivo mais criativo e melhor
orientado poderia corrigir a disparidade entre o excessivo investimento
tecnológico no consumo e o escasso investimento para resolver os problemas
urgentes da humanidade; poderia gerar formas inteligentes e rentáveis de
reutilização, recuperação funcional e reciclagem; poderia melhorar a eficiência
energética das cidades… A diversificação produtiva oferece à inteligência
humana possibilidades muito amplas de criar e inovar, ao mesmo tempo que
protege o meio ambiente e cria mais oportunidades de trabalho. Esta seria uma
criatividade capaz de fazer reflorescer a nobreza do ser humano, porque é mais
dignificante usar a inteligência, com audácia e responsabilidade, para
encontrar formas de desenvolvimento sustentável e equitativo, no quadro duma
concepção mais ampla da qualidade de vida. Ao contrário, é menos dignificante e
criativo e mais superficial insistir na criação de formas de espoliação da
natureza só para oferecer novas possibilidades de consumo e de ganho imediato.
193. Assim, se nalguns casos o
desenvolvimento sustentável implicará novas modalidades para crescer, noutros
casos – face ao crescimento ganancioso e irresponsável, que se verificou ao
longo de muitas décadas – devemos pensar também em abrandar um pouco a marcha,
pôr alguns limites razoáveis e até mesmo retroceder antes que seja tarde.
Sabemos que é insustentável o comportamento daqueles que consomem e destroem
cada vez mais, enquanto outros ainda não podem viver de acordo com a sua
dignidade humana. Por isso, chegou a hora de aceitar um certo decréscimo do
consumo nalgumas partes do mundo, fornecendo recursos para que se possa crescer
de forma saudável noutras partes. Bento XVI dizia
que «é preciso que as sociedades tecnologicamente avançadas estejam dispostas a
favorecer comportamentos caracterizados pela sobriedade, diminuindo as próprias
necessidades de energia e melhorando as condições da sua utilização».[135]
194. Para que apareçam novos modelos
de progresso, precisamos de «converter o modelo de desenvolvimento global»[136], e isto implica reflectir
responsavelmente «sobre o sentido da economia e dos seus objectivos, para
corrigir as suas disfunções e deturpações».[137] Não é suficiente conciliar, a meio
termo, o cuidado da natureza com o ganho financeiro, ou a preservação do meio
ambiente com o progresso. Neste campo, os meios-termos são apenas um pequeno
adiamento do colapso. Trata-se simplesmente de redefinir o progresso. Um
desenvolvimento tecnológico e económico, que não deixa um mundo melhor e uma
qualidade de vida integralmente superior, não se pode considerar progresso.
Além disso, muitas vezes a qualidade real de vida das pessoas diminui – pela
deterioração do ambiente, a baixa qualidade dos produtos alimentares ou o
esgotamento de alguns recursos – no contexto dum crescimento da economia.
Então, muitas vezes, o discurso do crescimento sustentável torna-se um
diversivo e um meio de justificação que absorve valores do discurso ecologista
dentro da lógica da finança e da tecnocracia, e a responsabilidade social e
ambiental das empresas reduz-se, na maior parte dos casos, a uma série de
acções de publicidade e imagem.
195. O princípio da maximização do
lucro, que tende a isolar-se de todas as outras considerações, é uma distorção
conceptual da economia: desde que aumente a produção, pouco interessa que isso
se consiga à custa dos recursos futuros ou da saúde do meio ambiente; se o
derrube duma floresta aumenta a produção, ninguém insere no respectivo cálculo
a perda que implica desertificar um território, destruir a biodiversidade ou
aumentar a poluição. Por outras palavras, as empresas obtêm lucros calculando e
pagando uma parte ínfima dos custos. Poder-se-ia considerar ético somente um
comportamento em que «os custos económicos e sociais derivados do uso dos
recursos ambientais comuns sejam reconhecidos de maneira transparente e
plenamente suportados por quem deles usufrui e não por outras populações nem
pelas gerações futuras».[138] A mentalidade utilitária, que
fornece apenas uma análise estática da realidade em função de necessidades
actuais, está presente tanto quando é o mercado que atribui os recursos como
quando o faz um Estado planificador.
196. Qual é o lugar da política?
Recordemos o princípio da subsidiariedade, que dá liberdade para o
desenvolvimento das capacidades presentes a todos os níveis, mas
simultaneamente exige mais responsabilidade pelo bem comum a quem tem mais
poder. É verdade que, hoje, alguns sectores económicos exercem mais poder do
que os próprios Estados. Mas não se pode justificar uma economia sem política,
porque seria incapaz de promover outra lógica para governar os vários aspectos
da crise actual. A lógica que não deixa espaço para uma sincera preocupação
pelo meio ambiente é a mesma em que não encontra espaço a preocupação por
integrar os mais frágeis, porque, «no modelo “do êxito” e “individualista” em
vigor, parece que não faz sentido investir para que os lentos, fracos ou menos
dotados possam também singrar na vida».[139]
197.
Precisamos duma política que pense com visão ampla e leve por diante uma
reformulação integral, abrangendo num diálogo interdisciplinar os vários
aspectos da crise. Muitas vezes, a própria política é responsável pelo seu
descrédito, devido à corrupção e à falta de boas políticas públicas. Se o
Estado não cumpre o seu papel numa região, alguns grupos económicos podem-se
apresentar como benfeitores e apropriar-se do poder real, sentindo-se
autorizados a não observar certas normas até se chegar às diferentes formas de
criminalidade organizada, tráfico de pessoas, narcotráfico e violência muito
difícil de erradicar. Se a política não é capaz de romper uma lógica perversa e
perde-se também em discursos inconsistentes, continuaremos sem enfrentar os grandes
problemas da humanidade. Uma estratégia de mudança real exige repensar a
totalidade dos processos, pois não basta incluir considerações ecológicas
superficiais enquanto não se puser em discussão a lógica subjacente à cultura
actual. Uma política sã deveria ser capaz de assumir este desafio.
198. A política e a economia tendem a
culpar-se reciprocamente a respeito da pobreza e da degradação ambiental. Mas o
que se espera é que reconheçam os seus próprios erros e encontrem formas de
interacção orientadas para o bem comum. Enquanto uns se afanam apenas com o
ganho económico e os outros estão obcecados apenas por conservar ou aumentar o
poder, o que nos resta são guerras ou acordos espúrios, onde o que menos
interessa às duas partes é preservar o meio ambiente e cuidar dos mais fracos.
Vale aqui também o princípio de que «a unidade é superior ao conflito».[140]
5. As religiões no diálogo com as
ciências
199. Não se pode sustentar que as
ciências empíricas expliquem completamente a vida, a essência íntima de todas
as criaturas e o conjunto da realidade. Isto seria ultrapassar indevidamente os
seus confins metodológicos limitados. Se se reflecte dentro deste quadro
restrito, desaparecem a sensibilidade estética, a poesia e ainda a capacidade
da razão perceber o sentido e a finalidade das coisas.[141] Quero lembrar que «os textos
religiosos clássicos podem oferecer um significado para todas as épocas,
possuem uma força motivadora que abre sempre novos horizontes (…). Será
razoável e inteligente relegá-los para a obscuridade, só porque nasceram no
contexto duma crença religiosa?»[142] Realmente, é ingénuo pensar que os
princípios éticos possam ser apresentados de modo puramente abstracto,
desligados de todo o contexto, e o facto de aparecerem com uma linguagem
religiosa não lhes tira valor algum no debate público. Os princípios éticos que
a razão é capaz de perceber, sempre podem reaparecer sob distintas roupagens e
expressos com linguagens diferentes, incluindo a religiosa.
200.
Além disso, qualquer solução técnica que as ciências pretendam oferecer será
impotente para resolver os graves problemas do mundo, se a humanidade perde o
seu rumo, se esquece as grandes motivações que tornam possível a convivência
social, o sacrifício, a bondade. Em todo o caso, será preciso fazer apelo aos
crentes para que sejam coerentes com a sua própria fé e não a contradigam com
as suas acções; será necessário insistir para que se abram novamente à graça de
Deus e se nutram profundamente das próprias convicções sobre o amor, a justiça
e a paz. Se às vezes uma má compreensão dos nossos princípios nos levou a
justificar o abuso da natureza, ou o domínio despótico do ser humano sobre a
criação, ou as guerras, a injustiça e a violência, nós, crentes, podemos
reconhecer que então fomos infiéis ao tesouro de sabedoria que devíamos
guardar. Muitas vezes os limites culturais de distintas épocas condicionaram
esta consciência do próprio património ético e espiritual, mas é precisamente o
regresso às respectivas fontes que permite às religiões responder melhor às
necessidades actuais.
201. A maior parte dos habitantes do
planeta declara-se crente, e isto deveria levar as religiões a estabelecerem
diálogo entre si, visando o cuidado da natureza, a defesa dos pobres, a
construção duma trama de respeito e de fraternidade. De igual modo é
indispensável um diálogo entre as próprias ciências, porque cada uma costuma
fechar-se nos limites da sua própria linguagem, e a especialização tende a
converter-se em isolamento e absolutização do próprio saber. Isto impede de
enfrentar adequadamente os problemas do meio ambiente. Torna-se necessário
também um diálogo aberto e respeitador dos diferentes movimentos ecologistas,
entre os quais não faltam as lutas ideológicas. A gravidade da crise ecológica
obriga-nos, a todos, a pensar no bem comum e a prosseguir pelo caminho do diálogo
que requer paciência, ascese e generosidade, lembrando-nos sempre que «a
realidade é superior à ideia».[143]
CAPÍTULO
VI
EDUCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE ECOLÓGICAS
202.
Muitas coisas devem reajustar o próprio rumo, mas antes de tudo é a humanidade
que precisa de mudar. Falta a consciência duma origem comum, duma recíproca
pertença e dum futuro partilhado por todos. Esta consciência basilar permitiria
o desenvolvimento de novas convicções, atitudes e estilos de vida. Surge,
assim, um grande desafio cultural, espiritual e educativo que implicará longos
processos de regeneração.
1. Apontar para outro estilo de vida
203. Dado que o mercado tende a criar
um mecanismo consumista compulsivo para vender os seus produtos, as pessoas
acabam por ser arrastadas pelo turbilhão das compras e gastos supérfluos. O
consumismo obsessivo é o reflexo subjectivo do paradigma tecno-económico. Está
a acontecer aquilo que já assinalava Romano Guardini: o ser humano «aceita os
objectos comuns e as formas habituais da vida como lhe são impostos pelos
planos nacionais e pelos produtos fabricados em série e, em geral, age assim
com a impressão de que tudo isto seja razoável e justo».[144] O referido paradigma faz crer a
todos que são livres pois conservam uma suposta liberdade de consumir, quando
na realidade apenas possui a liberdade a minoria que detém o poder económico e
financeiro. Nesta confusão, a humanidade pós-moderna não encontrou uma nova
compreensão de si mesma que a possa orientar, e esta falta de identidade é
vivida com angústia. Temos demasiados meios para escassos e raquíticos fins.
204. A situação actual do mundo «gera
um sentido de precariedade e insegurança, que, por sua vez, favorece formas de
egoísmo colectivo».[145] Quando as pessoas se tornam
auto-referenciais e se isolam na própria consciência, aumentam a sua
voracidade: quanto mais vazio está o coração da pessoa, tanto mais necessita de
objectos para comprar, possuir e consumir. Em tal contexto, parece não ser
possível, para uma pessoa, aceitar que a realidade lhe assinale limites; neste
horizonte, não existe sequer um verdadeiro bem comum. Se este é o tipo de
sujeito que tende a predominar numa sociedade, as normas serão respeitadas
apenas na medida em que não contradigam as necessidades próprias. Por isso, não
pensemos só na possibilidade de terríveis fenómenos climáticos ou de grandes
desastres naturais, mas também nas catástrofes resultantes de crises sociais,
porque a obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando poucos têm
possibilidades de o manter, só poderá provocar violência e destruição
recíproca.
205.
Mas nem tudo está perdido, porque os seres humanos, capazes de tocar o fundo da
degradação, podem também superar-se, voltar a escolher o bem e regenerar-se,
para além de qualquer condicionalismo psicológico e social que lhes seja
imposto. São capazes de se olhar a si mesmos com honestidade, externar o
próprio pesar e encetar caminhos novos rumo à verdadeira liberdade. Não há
sistemas que anulem, por completo, a abertura ao bem, à verdade e à beleza, nem
a capacidade de reagir que Deus continua a animar no mais fundo dos nossos
corações. A cada pessoa deste mundo, peço para não esquecer esta sua dignidade
que ninguém tem o direito de lhe tirar.
206. Uma mudança nos estilos de vida
poderia chegar a exercer uma pressão salutar sobre quantos detêm o poder
político, económico e social. Verifica-se isto quando os movimentos de
consumidores conseguem que se deixe de adquirir determinados produtos e assim
se tornam eficazes na mudança do comportamento das empresas, forçando-as a
reconsiderar o impacto ambiental e os modelos de produção. É um facto que,
quando os hábitos da sociedade afectam os ganhos das empresas, estas vêem-se
pressionadas a mudar a produção. Isto lembra-nos a responsabilidade social dos
consumidores. «Comprar é sempre um acto moral, para além de económico».[146] Por isso, hoje, «o tema da
degradação ambiental põe em questão os comportamentos de cada um de nós».[147]
207. A Carta da Terra convidava-nos,
a todos, a começar de novo deixando para trás uma etapa de autodestruição, mas
ainda não desenvolvemos uma consciência universal que o torne possível. Por
isso, atrevo-me a propor de novo aquele considerável desafio: «Como nunca antes
na história, o destino comum obriga-nos a procurar um novo início (…). Que o
nosso seja um tempo que se recorde pelo despertar duma nova reverência face à
vida, pela firme resolução de alcançar a sustentabilidade, pela intensificação
da luta em prol da justiça e da paz e pela jubilosa celebração da vida».[148]
208.
Sempre é possível desenvolver uma nova capacidade de sair de si mesmo rumo ao
outro. Sem tal capacidade, não se reconhece às outras criaturas o seu valor,
não se sente interesse em cuidar de algo para os outros, não se consegue impor
limites para evitar o sofrimento ou a degradação do que nos rodeia. A atitude
basilar de se auto-transcender, rompendo com a consciência isolada e a auto-referencialidade,
é a raiz que possibilita todo o cuidado dos outros e do meio ambiente; e faz
brotar a reacção moral de ter em conta o impacto que possa provocar cada acção
e decisão pessoal fora de si mesmo. Quando somos capazes de superar o individualismo,
pode-se realmente desenvolver um estilo de vida alternativo e torna-se possível
uma mudança relevante na sociedade.
2. Educar para a aliança entre a
humanidade e o ambiente
209.
A consciência da gravidade da crise cultural e ecológica precisa de traduzir-se
em novos hábitos. Muitos estão cientes de que não basta o progresso actual e a
mera acumulação de objectos ou prazeres para dar sentido e alegria ao coração
humano, mas não se sentem capazes de renunciar àquilo que o mercado lhes
oferece. Nos países que deveriam realizar as maiores mudanças nos hábitos de
consumo, os jovens têm uma nova sensibilidade ecológica e um espírito generoso,
e alguns deles lutam admiravelmente pela defesa do meio ambiente, mas cresceram
num contexto de altíssimo consumo e bem-estar que torna difícil a maturação
doutros hábitos. Por isso, estamos perante um desafio educativo.
210.
A educação ambiental tem vindo a ampliar os seus objectivos. Se, no começo,
estava muito centrada na informação científica e na consciencialização e
prevenção dos riscos ambientais, agora tende a incluir uma crítica dos «mitos»
da modernidade baseados na razão instrumental (individualismo, progresso
ilimitado, concorrência, consumismo, mercado sem regras) e tende também a
recuperar os distintos níveis de equilíbrio ecológico: o interior consigo
mesmo, o solidário com os outros, o natural com todos os seres vivos, o
espiritual com Deus. A educação ambiental deveria predispor-nos para dar este
salto para o Mistério, do qual uma ética ecológica recebe o seu sentido mais
profundo. Além disso, há educadores capazes de reordenar os itinerários
pedagógicos duma ética ecológica, de modo que ajudem efectivamente a crescer na
solidariedade, na responsabilidade e no cuidado assente na compaixão.
211.
Às vezes, porém, esta educação, chamada a criar uma «cidadania ecológica»,
limita-se a informar e não consegue fazer maturar hábitos. A existência de leis
e normas não é suficiente, a longo prazo, para limitar os maus comportamentos,
mesmo que haja um válido controle. Para a norma jurídica produzir efeitos
importantes e duradouros, é preciso que a maior parte dos membros da sociedade
a tenha acolhido, com base em motivações adequadas, e reaja com uma
transformação pessoal. A doação de si mesmo num compromisso ecológico só é
possível a partir do cultivo de virtudes sólidas. Se uma pessoa habitualmente
se resguarda um pouco mais em vez de ligar o aquecimento, embora as suas
economias lhe permitam consumir e gastar mais, isso supõe que adquiriu
convicções e modos de sentir favoráveis ao cuidado do ambiente. É muito nobre
assumir o dever de cuidar da criação com pequenas acções diárias, e é
maravilhoso que a educação seja capaz de motivar para elas até dar forma a um
estilo de vida. A educação na responsabilidade ambiental pode incentivar vários
comportamentos que têm incidência directa e importante no cuidado do meio
ambiente, tais como evitar o uso de plástico e papel, reduzir o consumo de
água, diferenciar o lixo, cozinhar apenas aquilo que razoavelmente se poderá
comer, tratar com desvelo os outros seres vivos, servir-se dos transportes
públicos ou partilhar o mesmo veículo com várias pessoas, plantar árvores,
apagar as luzes desnecessárias… Tudo isto faz parte duma criatividade generosa
e dignificante, que põe a descoberto o melhor do ser humano. Voltar – com base
em motivações profundas – a utilizar algo em vez de o desperdiçar rapidamente
pode ser um acto de amor que exprime a nossa dignidade.
212.
E não se pense que estes esforços são incapazes de mudar o mundo. Estas acções
espalham, na sociedade, um bem que frutifica sempre para além do que é possível
constatar; provocam, no seio desta terra, um bem que sempre tende a
difundir-se, por vezes invisivelmente. Além disso, o exercício destes
comportamentos restitui-nos o sentimento da nossa dignidade, leva-nos a uma
maior profundidade existencial, permite-nos experimentar que vale a pena a
nossa passagem por este mundo.
213. Vários são os âmbitos
educativos: a escola, a família, os meios de comunicação, a catequese, e
outros. Uma boa educação escolar em tenra idade coloca sementes que podem
produzir efeitos durante toda a vida. Mas, quero salientar a importância
central da família, porque «é o lugar onde a vida, dom de Deus, pode ser
convenientemente acolhida e protegida contra os múltiplos ataques a que está
exposta, e pode desenvolver-se segundo as exigências de um crescimento humano
autêntico. Contra a denominada cultura da morte, a família constitui a sede da
cultura da vida».[149] Na família, cultivam-se os
primeiros hábitos de amor e cuidado da vida, como, por exemplo, o uso correcto
das coisas, a ordem e a limpeza, o respeito pelo ecossistema local e a
protecção de todas as criaturas. A família é o lugar da formação integral, onde
se desenvolvem os distintos aspectos, intimamente relacionados entre si, do
amadurecimento pessoal. Na família, aprende-se a pedir licença sem servilismo,
a dizer «obrigado» como expressão duma sentida avaliação das coisas que
recebemos, a dominar a agressividade ou a ganância, e a pedir desculpa quando
fazemos algo de mal. Estes pequenos gestos de sincera cortesia ajudam a
construir uma cultura da vida compartilhada e do respeito pelo que nos rodeia.
214.
Compete à política e às várias associações um esforço de formação das
consciências da população. Naturalmente compete também à Igreja. Todas as
comunidades cristãs têm um papel importante a desempenhar nesta educação.
Espero também que, nos nossos Seminários e Casas Religiosas de Formação, se
eduque para uma austeridade responsável, a grata contemplação do mundo, o
cuidado da fragilidade dos pobres e do meio ambiente. Tendo em conta o muito
que está em jogo, do mesmo modo que são necessárias instituições dotadas de
poder para punir os danos ambientais, também nós precisamos de nos controlar e
educar uns aos outros.
215. Neste contexto, «não se deve
descurar nunca a relação que existe entre uma educação estética apropriada e a
preservação de um ambiente sadio».[150] Prestar atenção à beleza e amá-la
ajuda-nos a sair do pragmatismo utilitarista. Quando não se aprende a parar a
fim de admirar e apreciar o que é belo, não surpreende que tudo se transforme
em objecto de uso e abuso sem escrúpulos. Ao mesmo tempo, se se quer conseguir
mudanças profundas, é preciso ter presente que os modelos de pensamento influem
realmente nos comportamentos. A educação será ineficaz e os seus esforços
estéreis, se não se preocupar também por difundir um novo modelo relativo ao
ser humano, à vida, à sociedade e à relação com a natureza. Caso contrário,
continuará a perdurar o modelo consumista, transmitido pelos meios de
comunicação social e através dos mecanismos eficazes do mercado.
3. A conversão ecológica
216. A grande riqueza da
espiritualidade cristã, proveniente de vinte séculos de experiências pessoais e
comunitárias, constitui uma magnífica contribuição para o esforço de renovar a
humanidade. Desejo propor aos cristãos algumas linhas de espiritualidade
ecológica que nascem das convicções da nossa fé, pois aquilo que o Evangelho
nos ensina tem consequências no nosso modo de pensar, sentir e viver. Não se
trata tanto de propor ideias, como sobretudo falar das motivações que derivam
da espiritualidade para alimentar uma paixão pelo cuidado do mundo. Com efeito,
não é possível empenhar-se em coisas grandes apenas com doutrinas, sem uma
mística que nos anima, sem «uma moção interior que impele, motiva, encoraja e
dá sentido à acção pessoal e comunitária».[151] Temos de reconhecer que nós,
cristãos, nem sempre recolhemos e fizemos frutificar as riquezas dadas por Deus
à Igreja, nas quais a espiritualidade não está desligada do próprio corpo nem
da natureza ou das realidades deste mundo, mas vive com elas e nelas, em
comunhão com tudo o que nos rodeia.
217. Se «os desertos exteriores se
multiplicam no mundo, porque os desertos interiores se tornaram tão amplos»,[152] a crise ecológica é um apelo a uma
profunda conversão interior. Entretanto temos de reconhecer também que alguns
cristãos, até comprometidos e piedosos, com o pretexto do realismo pragmático
frequentemente se burlam das preocupações pelo meio ambiente. Outros são
passivos, não se decidem a mudar os seus hábitos e tornam-se incoerentes.
Falta-lhes, pois, uma conversão ecológica, que comporta deixar
emergir, nas relações com o mundo que os rodeia, todas as consequências do
encontro com Jesus. Viver a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo de
opcional nem um aspecto secundário da experiência cristã, mas parte essencial
duma existência virtuosa.
218. Recordemos o modelo de São
Francisco de Assis, para propor uma sã relação com a criação como dimensão da
conversão integral da pessoa. Isto exige também reconhecer os próprios erros,
pecados, vícios ou negligências, e arrepender-se de coração, mudar a partir de
dentro. A Igreja na Austrália soube expressar a conversão em termos de
reconciliação com a criação: «Para realizar esta reconciliação, devemos
examinar as nossas vidas e reconhecer de que modo ofendemos a criação de Deus
com as nossas acções e com a nossa incapacidade de agir. Devemos fazer a
experiência duma conversão, duma mudança do coração».[153]
219. Todavia, para se resolver uma
situação tão complexa como esta que enfrenta o mundo actual, não basta que cada
um seja melhor. Os indivíduos isolados podem perder a capacidade e a liberdade
de vencer a lógica da razão instrumental e acabam por sucumbir a um consumismo
sem ética nem sentido social e ambiental. Aos problemas sociais responde-se,
não com a mera soma de bens individuais, mas com redes comunitárias: «As
exigências desta obra serão tão grandes, que as possibilidades das iniciativas
individuais e a cooperação dos particulares, formados de maneira
individualista, não serão capazes de lhes dar resposta. Será necessária uma
união de forças e uma unidade de contribuições».[154] A conversão ecológica, que se
requer para criar um dinamismo de mudança duradoura, é também uma conversão
comunitária.
220. Esta conversão comporta várias
atitudes que se conjugam para activar um cuidado generoso e cheio de ternura.
Em primeiro lugar, implica gratidão e gratuidade, ou seja, um reconhecimento do
mundo como dom recebido do amor do Pai, que consequentemente provoca
disposições gratuitas de renúncia e gestos generosos, mesmo que ninguém os veja
nem agradeça. «Que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua direita (…); e
teu Pai, que vê o oculto, há-de premiar-te» (Mt 6, 3-4). Implica
ainda a consciência amorosa de não estar separado das outras criaturas, mas de
formar com os outros seres do universo uma estupenda comunhão universal. O
crente contempla o mundo, não como alguém que está fora dele, mas dentro,
reconhecendo os laços com que o Pai nos uniu a todos os seres. Além disso a
conversão ecológica, fazendo crescer as peculiares capacidades que Deus deu a
cada crente, leva-o a desenvolver a sua criatividade e entusiasmo para resolver
os dramas do mundo, oferecendo-se a Deus «como sacrifício vivo, santo e
agradável» (Rm12, 1). Não vê a sua superioridade como motivo de glória
pessoal nem de domínio irresponsável, mas como uma capacidade diferente que,
por sua vez, lhe impõe uma grave responsabilidade derivada da sua fé.
221. Ajudam a enriquecer o sentido de
tal conversão várias convicções da nossa fé, desenvolvidas ao início desta
encíclica, como, por exemplo, a consciência de que cada criatura reflecte algo
de Deus e tem uma mensagem para nos transmitir, ou a certeza de que Cristo
assumiu em Si mesmo este mundo material e agora, ressuscitado, habita no íntimo
de cada ser, envolvendo-o com o seu carinho e penetrando-o com a sua luz; e
ainda o reconhecimento de que Deus criou o mundo, inscrevendo nele uma ordem e
um dinamismo que o ser humano não tem o direito de ignorar. Porventura uma
pessoa, ouvindo no Evangelho Jesus dizer – a propósito dos pássaros – que
«nenhum deles passa despercebido diante de Deus» (Lc12, 6), será capaz
de os maltratar ou causar-lhes dano? Convido todos os cristãos a explicitar
esta dimensão da sua conversão, permitindo que a força e a luz da graça
recebida se estendam também à relação com as outras criaturas e com o mundo que
os rodeia, e suscite aquela sublime fraternidade com a criação inteira que
viveu, de maneira tão elucidativa, São Francisco de Assis.
4. Alegria e paz
222.
A espiritualidade cristã propõe uma forma alternativa de entender a qualidade
de vida, encorajando um estilo de vida profético e contemplativo, capaz de
gerar profunda alegria sem estar obcecado pelo consumo. É importante adoptar um
antigo ensinamento, presente em distintas tradições religiosas e também na
Bíblia. Trata-se da convicção de que «quanto menos, tanto mais». Com efeito, a
acumulação constante de possibilidades para consumir distrai o coração e impede
de dar o devido apreço a cada coisa e a cada momento. Pelo contrário, tornar-se
serenamente presente diante de cada realidade, por mais pequena que seja,
abre-nos muitas mais possibilidades de compreensão e realização pessoal. A
espiritualidade cristã propõe um crescimento na sobriedade e uma capacidade de
se alegrar com pouco. É um regresso à simplicidade que nos permite parar a
saborear as pequenas coisas, agradecer as possibilidades que a vida oferece sem
nos apegarmos ao que temos nem entristecermos por aquilo que não possuímos.
Isto exige evitar a dinâmica do domínio e da mera acumulação de prazeres.
223.
A sobriedade, vivida livre e conscientemente, é libertadora. Não se trata de
menos vida, nem vida de baixa intensidade; é precisamente o contrário. Com
efeito, as pessoas que saboreiam mais e vivem melhor cada momento são aquelas
que deixam de debicar aqui e ali, sempre à procura do que não têm, e
experimentam o que significa dar apreço a cada pessoa e a cada coisa, aprendem
a familiarizar com as coisas mais simples e sabem alegrar-se com elas. Deste
modo conseguem reduzir o número das necessidades insatisfeitas e diminuem o
cansaço e a ansiedade. É possível necessitar de pouco e viver muito, sobretudo
quando se é capaz de dar espaço a outros prazeres, encontrando satisfação nos
encontros fraternos, no serviço, na frutificação dos próprios carismas, na
música e na arte, no contacto com a natureza, na oração. A felicidade exige
saber limitar algumas necessidades que nos entorpecem, permanecendo assim
disponíveis para as múltiplas possibilidades que a vida oferece.
224.
A sobriedade e a humildade não gozaram de positiva consideração no século
passado. Mas, quando se debilita de forma generalizada o exercício dalguma
virtude na vida pessoal e social, isso acaba por provocar variados
desequilíbrios, mesmo ambientais. Por isso, não basta falar apenas da
integridade dos ecossistemas; é preciso ter a coragem de falar da integridade
da vida humana, da necessidade de incentivar e conjugar todos os grandes
valores. O desaparecimento da humildade, num ser humano excessivamente
entusiasmado com a possibilidade de dominar tudo sem limite algum, só pode
acabar por prejudicar a sociedade e o meio ambiente. Não é fácil desenvolver
esta humildade sadia e uma sobriedade feliz, se nos tornamos autónomos, se
excluímos Deus da nossa vida fazendo o nosso eu ocupar o seu lugar, se pensamos
ser a nossa subjectividade que determina o que é bem e o que é mal.
225. Por outro lado, ninguém pode
amadurecer numa sobriedade feliz, se não estiver em paz consigo mesmo. E parte
duma adequada compreensão da espiritualidade consiste em alargar a nossa
compreensão da paz, que é muito mais do que a ausência de guerra. A paz
interior das pessoas tem muito a ver com o cuidado da ecologia e com o bem
comum, porque, autenticamente vivida, reflecte-se num equilibrado estilo de
vida aliado com a capacidade de admiração que leva à profundidade da vida. A
natureza está cheia de palavras de amor; mas, como poderemos ouvi-las no meio
do ruído constante, da distracção permanente e ansiosa, ou do culto da
notoriedade? Muitas pessoas experimentam um desequilíbrio profundo, que as
impele a fazer as coisas a toda a velocidade para se sentirem ocupadas, numa
pressa constante que, por sua vez, as leva a atropelar tudo o que têm ao seu
redor. Isto tem incidência no modo como se trata o ambiente. Uma ecologia
integral exige que se dedique algum tempo para recuperar a harmonia serena com
a criação, reflectir sobre o nosso estilo de vida e os nossos ideais,
contemplar o Criador, que vive entre nós e naquilo que nos rodeia e cuja
presença «não precisa de ser criada, mas descoberta, desvendada».[155]
226. Falamos aqui duma atitude do
coração, que vive tudo com serena atenção, que sabe manter-se plenamente
presente diante duma pessoa sem estar a pensar no que virá depois, que se
entrega a cada momento como um dom divino que se deve viver em plenitude. Jesus
ensinou-nos esta atitude, quando nos convidava a olhar os lírios do campo e as
aves do céu, ou quando, na presença dum homem inquieto, «fitando nele o olhar,
sentiu afeição por ele» (Mc 10, 21). De certeza que Ele estava
plenamente presente diante de cada ser humano e de cada criatura, mostrando-nos
assim um caminho para superar a ansiedade doentia que nos torna superficiais,
agressivos e consumistas desenfreados.
227.
Uma expressão desta atitude é parar a agradecer a Deus antes e depois das
refeições. Proponho aos crentes que retomem este hábito importante e o vivam
profundamente. Este momento da bênção da mesa, embora muito breve, recorda-nos
que a nossa vida depende de Deus, fortalece o nosso sentido de gratidão pelos
dons da criação, dá graças por aqueles que com o seu trabalho fornecem estes
bens, e reforça a solidariedade com os mais necessitados.
5. Amor civil e político
228. O cuidado da natureza faz parte
dum estilo de vida que implica capacidade de viver juntos e de comunhão. Jesus
lembrou-nos que temos Deus como nosso Pai comum e que isto nos torna irmãos. O
amor fraterno só pode ser gratuito, nunca pode ser uma paga a outrem pelo que
realizou, nem um adiantamento pelo que esperamos venha a fazer. Por isso, é
possível amar os inimigos. Esta mesma gratuidade leva-nos a amar e aceitar o
vento, o sol ou as nuvens, embora não se submetam ao nosso controle. Assim
podemos falar duma fraternidade universal.
229.
É necessário voltar a sentir que precisamos uns dos outros, que temos uma
responsabilidade para com os outros e o mundo, que vale a pena ser bons e
honestos. Vivemos já muito tempo na degradação moral, baldando-nos à ética, à
bondade, à fé, à honestidade; chegou o momento de reconhecer que esta alegre
superficialidade de pouco nos serviu. Uma tal destruição de todo o fundamento
da vida social acaba por colocar-nos uns contra os outros na defesa dos
próprios interesses, provoca o despertar de novas formas de violência e
crueldade e impede o desenvolvimento duma verdadeira cultura do cuidado do meio
ambiente.
230.
O exemplo de Santa Teresa de Lisieux convida-nos a pôr em prática o pequeno
caminho do amor, a não perder a oportunidade duma palavra gentil, dum sorriso,
de qualquer pequeno gesto que semeie paz e amizade. Uma ecologia integral é
feita também de simples gestos quotidianos, pelos quais quebramos a lógica da
violência, da exploração, do egoísmo. Pelo contrário, o mundo do consumo
exacerbado é, simultaneamente, o mundo que maltrata a vida em todas as suas
formas.
231. O amor, cheio de pequenos gestos
de cuidado mútuo, é também civil e político, manifestando-se em todas as acções
que procuram construir um mundo melhor. O amor à sociedade e o compromisso pelo
bem comum são uma forma eminente de caridade, que toca não só as relações entre
os indivíduos, mas também «as macrorrelações como relacionamentos sociais,
económicos, políticos».[156] Por isso, a Igreja propôs ao mundo
o ideal duma «civilização do amor».[157] O amor social é a chave para um
desenvolvimento autêntico: «Para tornar a sociedade mais humana, mais digna da
pessoa, é necessário revalorizar o amor na vida social – nos planos político,
económico, cultural – fazendo dele a norma constante e suprema do agir».[158] Neste contexto, juntamente com a
importância dos pequenos gestos diários, o amor social impele-nos a pensar em
grandes estratégias que detenham eficazmente a degradação ambiental e
incentivem uma cultura do cuidado que permeie toda a
sociedade. Quando alguém reconhece a vocação de Deus para intervir juntamente
com os outros nestas dinâmicas sociais, deve lembrar-se que isto faz parte da
sua espiritualidade, é exercício da caridade e, deste modo, amadurece e se
santifica.
232.
Nem todos são chamados a trabalhar de forma directa na política, mas no seio da
sociedade floresce uma variedade inumerável de associações que intervêm em prol
do bem comum, defendendo o meio ambiente natural e urbano. Por exemplo,
preocupam-se com um lugar público (um edifício, uma fonte, um monumento
abandonado, uma paisagem, uma praça) para proteger, sanar, melhorar ou
embelezar algo que é de todos. Ao seu redor, desenvolvem-se ou recuperam-se
vínculos, fazendo surgir um novo tecido social local. Assim, uma comunidade
liberta-se da indiferença consumista. Isto significa também cultivar uma
identidade comum, uma história que se conserva e transmite. Desta forma
cuida-se do mundo e da qualidade de vida dos mais pobres, com um sentido de
solidariedade que é, ao mesmo tempo, consciência de habitar numa casa comum que
Deus nos confiou. Estas acções comunitárias, quando exprimem um amor que se
doa, podem transformar-se em experiências espirituais intensas.
6. Os sinais sacramentais e o
descanso celebrativo
233. O universo desenvolve-se em
Deus, que o preenche completamente. E, portanto, há um mistério a contemplar
numa folha, numa vereda, no orvalho, no rosto do pobre.[159] O ideal não é só passar da
exterioridade à interioridade para descobrir a acção de Deus na alma, mas
também chegar a encontrá-Lo em todas as coisas, como ensinava São Boaventura:
«A contemplação é tanto mais elevada quanto mais o homem sente em si mesmo o
efeito da graça divina ou quanto mais sabe reconhecer Deus nas outras
criaturas».[160]
234. São João da Cruz ensinava que
tudo o que há de bom nas coisas e experiências do mundo «encontra-se
eminentemente em Deus de maneira infinita ou, melhor, Ele é cada uma destas
grandezas que se pregam».[161]E isto, não porque as coisas limitadas
do mundo sejam realmente divinas, mas porque o místico experimenta a ligação
íntima que há entre Deus e todos os seres vivos e, deste modo, «sente que Deus
é para ele todas as coisas».[162] Quando admira a grandeza duma
montanha, não pode separar isto de Deus, e percebe que tal admiração interior
que ele vive, deve finalizar no Senhor: «As montanhas têm cumes, são altas,
imponentes, belas, graciosas, floridas e perfumadas. Como estas montanhas, é o
meu Amado para mim. Os vales solitários são tranquilos, amenos, frescos,
sombreados, ricos de doces águas. Pela variedade das suas árvores e pelo canto
suave das aves, oferecem grande divertimento e encanto aos sentidos e, na sua
solidão e silêncio, dão refrigério e repouso: como estes vales, é o meu Amado
para mim».[163]
235. Os sacramentos constituem um
modo privilegiado em que a natureza é assumida por Deus e transformada em
mediação da vida sobrenatural. Através do culto, somos convidados a abraçar o
mundo num plano diferente. A água, o azeite, o fogo e as cores são assumidas
com toda a sua força simbólica e incorporam-se no louvor. A mão que abençoa é
instrumento do amor de Deus e reflexo da proximidade de Cristo, que veio para
Se fazer nosso companheiro no caminho da vida. A água derramada sobre o corpo
da criança baptizada, é sinal de vida nova. Não fugimos do mundo, nem negamos a
natureza, quando queremos encontrar-nos com Deus. Nota-se isto particularmente
na espiritualidade do Oriente cristão. «A beleza, que no Oriente é um dos nomes
mais queridos para exprimir a harmonia divina e o modelo da humanidade
transfigurada, mostra-se em toda a parte: nas formas do templo, nos sons, nas
cores, nas luzes, nos perfumes».[164] Segundo a experiência cristã,
todas as criaturas do universo material encontram o seu verdadeiro sentido no
Verbo encarnado, porque o Filho de Deus incorporou na sua pessoa parte do
universo material, onde introduziu um gérmen de transformação definitiva: «O
cristianismo não rejeita a matéria; pelo contrário, a corporeidade é valorizada
plenamente no acto litúrgico, onde o corpo humano mostra sua íntima natureza de
templo do Espírito Santo e chega a unir-se a Jesus Senhor, feito também Ele
corpo para a salvação do mundo».[165]
236. A criação encontra a sua maior
elevação na Eucaristia. A graça, que tende a manifestar-se de modo sensível,
atinge uma expressão maravilhosa quando o próprio Deus, feito homem, chega ao
ponto de fazer-Se comer pela sua criatura. No apogeu do mistério da Encarnação,
o Senhor quer chegar ao nosso íntimo através dum pedaço de matéria. Não o faz
de cima, mas de dentro, para podermos encontrá-Lo a Ele no nosso próprio mundo.
Na Eucaristia, já está realizada a plenitude, sendo o centro vital do universo,
centro transbordante de amor e de vida sem fim. Unido ao Filho encarnado,
presente na Eucaristia, todo o cosmos dá graças a Deus. Com efeito a Eucaristia
é, por si mesma, um acto de amor cósmico. «Sim, cósmico! Porque mesmo quando
tem lugar no pequeno altar duma igreja da aldeia, a Eucaristia é sempre
celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo».[166] A Eucaristia une o céu e a terra,
abraça e penetra toda a criação. O mundo, saído das mãos de Deus, volta a Ele
em feliz e plena adoração: no Pão Eucarístico, «a criação propende para a
divinização, para as santas núpcias, para a unificação com o próprio Criador».[167] Por isso, a Eucaristia é também
fonte de luz e motivação para as nossas preocupações pelo meio ambiente, e
leva-nos a ser guardiões da criação inteira.
237. A participação na Eucaristia é
especialmente importante ao domingo. Este dia, à semelhança do sábado judaico,
é-nos oferecido como dia de cura das relações do ser humano com Deus, consigo
mesmo, com os outros e com o mundo. O domingo é o dia da Ressurreição, o
«primeiro dia» da nova criação, que tem as suas primícias na humanidade
ressuscitada do Senhor, garantia da transfiguração final de toda a realidade
criada. Além disso, este dia anuncia «o descanso eterno do homem, em Deus».[168] Assim, a espiritualidade cristã
integra o valor do repouso e da festa. O ser humano tende a reduzir o descanso
contemplativo ao âmbito do estéril e do inútil, esquecendo que deste modo se
tira à obra realizada o mais importante: o seu significado. Na nossa
actividade, somos chamados a incluir uma dimensão receptiva e gratuita, o que é
diferente da simples inactividade. Trata-se doutra maneira de agir, que
pertence à nossa essência. Assim, a acção humana é preservada não só do
activismo vazio, mas também da ganância desenfreada e da consciência que se
isola buscando apenas o benefício pessoal. A lei do repouso semanal impunha
abster-se do trabalho no sétimo dia, «para que descansem o teu boi e o teu
jumento e tomem fôlego o filho da tua serva e o estrangeiro residente» (Ex 23,
12). O repouso é uma ampliação do olhar, que permite voltar a reconhecer os
direitos dos outros. Assim o dia de descanso, cujo centro é a Eucaristia,
difunde a sua luz sobre a semana inteira e encoraja-nos a assumir o cuidado da
natureza e dos pobres.
7. A Trindade e a relação
entre as criaturas
238. O Pai é a fonte última de tudo,
fundamento amoroso e comunicativo de tudo o que existe. O Filho, que O reflecte
e por Quem tudo foi criado, uniu-Se a esta terra, quando foi formado no seio de
Maria. O Espírito, vínculo infinito de amor, está intimamente presente no
coração do universo, animando e suscitando novos caminhos. O mundo foi criado
pelas três Pessoas como um único princípio divino, mas cada uma delas realiza
esta obra comum segundo a própria identidade pessoal. Por isso, «quando,
admirados, contemplamos o universo na sua grandeza e beleza, devemos louvar a
inteira Trindade».[169]
239. Para os cristãos, acreditar num
Deus único que é comunhão trinitária, leva a pensar que toda a realidade contém
em si mesma uma marca propriamente trinitária. São Boaventura chega a dizer que
o ser humano, antes do pecado, conseguia descobrir como cada criatura «testemunha
que Deus é trino». O reflexo da Trindade podia-se reconhecer na natureza,
«quando esse livro não era obscuro para o homem, nem a vista do homem se tinha
turvado».[170] Este santo franciscano ensina-nos
que toda a criatura traz em si uma estrutura propriamente trinitária,
tão real que poderia ser contemplada espontaneamente, se o olhar do ser humano
não estivesse limitado, obscurecido e fragilizado. Indica-nos, assim, o desafio
de tentar ler a realidade em chave trinitária.
240. As Pessoas divinas são relações
subsistentes; e o mundo, criado segundo o modelo divino, é uma trama de
relações. As criaturas tendem para Deus; e é próprio de cada ser vivo tender,
por sua vez, para outra realidade, de modo que, no seio do universo, podemos
encontrar uma série inumerável de relações constantes que secretamente se
entrelaçam.[171] Isto convida-nos não só a admirar
os múltiplos vínculos que existem entre as criaturas, mas leva-nos também a
descobrir uma chave da nossa própria realização. Na verdade, a pessoa humana
cresce, amadurece e santifica-se tanto mais, quanto mais se relaciona, sai de
si mesma para viver em comunhão com Deus, com os outros e com todas as
criaturas. Assim assume na própria existência aquele dinamismo trinitário que
Deus imprimiu nela desde a sua criação. Tudo está interligado, e isto
convida-nos a maturar uma espiritualidade da solidariedade global que brota do
mistério da Trindade.
8. A Rainha de toda a criação
241. Maria, a mãe que cuidou de
Jesus, agora cuida com carinho e preocupação materna deste mundo ferido. Assim
como chorou com o coração trespassado a morte de Jesus, assim também agora Se
compadece do sofrimento dos pobres crucificados e das criaturas deste mundo
exterminadas pelo poder humano. Ela vive, com Jesus, completamente
transfigurada, e todas as criaturas cantam a sua beleza. É a Mulher «vestida de
sol, com a lua debaixo dos pés e com uma coroa de doze estrelas na cabeça» (Ap12,
1). Elevada ao céu, é Mãe e Rainha de toda a criação. No seu corpo glorificado,
juntamente com Cristo ressuscitado, parte da criação alcançou toda a plenitude
da sua beleza. Maria não só conserva no seu coração toda a vida de Jesus, que
«guardava» cuidadosamente (cf.Lc2, 51), mas agora compreende também o
sentido de todas as coisas. Por isso, podemos pedir-Lhe que nos ajude a
contemplar este mundo com um olhar mais sapiente.
242.
E ao lado d’Ela, na sagrada família de Nazaré, destaca-se a figura de São José.
Com o seu trabalho e presença generosa, cuidou e defendeu Maria e Jesus e
livrou-os da violência dos injustos, levando-os para o Egipto. No Evangelho,
aparece descrito como um homem justo, trabalhador, forte; mas, da sua figura,
emana também uma grande ternura, própria não de quem é fraco mas de quem é
verdadeiramente forte, atento à realidade para amar e servir humildemente. Por
isso, foi declarado protector da Igreja universal. Também Ele nos pode ensinar
a cuidar, pode motivar-nos a trabalhar com generosidade e ternura para proteger
este mundo que Deus nos confiou.
9. Para além do sol
243. No fim, encontrar-nos-emos face
a face com a beleza infinita de Deus (cf.1 Cor13, 12) e poderemos ler,
com jubilosa admiração, o mistério do universo, o qual terá parte connosco na
plenitude sem fim. Estamos a caminhar para o sábado da eternidade, para a nova
Jerusalém, para a casa comum do Céu. Diz-nos Jesus: «Eu renovo todas as coisas»
(Ap 21, 5). A vida eterna será uma maravilha compartilhada, onde
cada criatura, esplendorosamente transformada, ocupará o seu lugar e terá algo para
oferecer aos pobres definitivamente libertados.
244. Na expectativa da vida eterna,
unimo-nos para tomar a nosso cargo esta casa que nos foi confiada, sabendo que
aquilo de bom que há nela será assumido na festa do Céu. Juntamente com todas
as criaturas, caminhamos nesta terra à procura de Deus, porque, «se o mundo tem
um princípio e foi criado, procura quem o criou, procura quem lhe deu início,
aquele que é o seu Criador».[172] Caminhemos cantando; que as nossas
lutas e a nossa preocupação por este planeta não nos tirem a alegria da
esperança.
245.
Deus, que nos chama a uma generosa entrega e a oferecer-Lhe tudo, também nos dá
as forças e a luz de que necessitamos para prosseguir. No coração deste mundo,
permanece presente o Senhor da vida que tanto nos ama. Não nos abandona, não
nos deixa sozinhos, porque Se uniu definitivamente à nossa terra e o seu amor sempre
nos leva a encontrar novos caminhos. Que Ele seja louvado!
*
* *
246.
Depois desta longa reflexão, jubilosa e ao mesmo tempo dramática, proponho duas
orações: uma que podemos partilhar todos quantos acreditam num Deus Criador
Omnipotente, e outra pedindo que nós, cristãos, saibamos assumir os
compromissos para com a criação que o Evangelho de Jesus nos propõe.
Oração pela nossa terra
Deus Omnipotente,
que estais presente em todo o universo
e na mais pequenina das vossas criaturas,
Vós que envolveis com a vossa ternura
tudo o que existe,
derramai em nós a força do vosso amor
para cuidarmos da vida e da beleza.
Inundai-nos de paz,
para que vivamos como irmãos e irmãs
sem prejudicar ninguém.
Ó Deus dos pobres,
ajudai-nos a resgatar
os abandonados e esquecidos desta terra
que valem tanto aos vossos olhos.
Curai a nossa vida,
para que protejamos o mundo
e não o depredemos,
para que semeemos beleza
e não poluição nem destruição.
Tocai os corações
daqueles que buscam apenas benefícios
à custa dos pobres e da terra.
Ensinai-nos a descobrir o valor de cada coisa,
a contemplar com encanto,
a reconhecer que estamos profundamente unidos
com todas as criaturas
no nosso caminho para a vossa luz infinita.
Obrigado porque estais connosco todos os dias.
Sustentai-nos, por favor, na nossa luta
pela justiça, o amor e a paz.
que estais presente em todo o universo
e na mais pequenina das vossas criaturas,
Vós que envolveis com a vossa ternura
tudo o que existe,
derramai em nós a força do vosso amor
para cuidarmos da vida e da beleza.
Inundai-nos de paz,
para que vivamos como irmãos e irmãs
sem prejudicar ninguém.
Ó Deus dos pobres,
ajudai-nos a resgatar
os abandonados e esquecidos desta terra
que valem tanto aos vossos olhos.
Curai a nossa vida,
para que protejamos o mundo
e não o depredemos,
para que semeemos beleza
e não poluição nem destruição.
Tocai os corações
daqueles que buscam apenas benefícios
à custa dos pobres e da terra.
Ensinai-nos a descobrir o valor de cada coisa,
a contemplar com encanto,
a reconhecer que estamos profundamente unidos
com todas as criaturas
no nosso caminho para a vossa luz infinita.
Obrigado porque estais connosco todos os dias.
Sustentai-nos, por favor, na nossa luta
pela justiça, o amor e a paz.
Oração cristã com a criação
Nós Vos louvamos, Pai,
com todas as vossas criaturas,
que saíram da vossa mão poderosa.
São vossas e estão repletas da vossa presença
e da vossa ternura.
Louvado sejais!
com todas as vossas criaturas,
que saíram da vossa mão poderosa.
São vossas e estão repletas da vossa presença
e da vossa ternura.
Louvado sejais!
Filho de Deus, Jesus,
por Vós foram criadas todas as coisas.
Fostes formado no seio materno de Maria,
fizestes-Vos parte desta terra,
e contemplastes este mundo
com olhos humanos.
Hoje estais vivo em cada criatura
com a vossa glória de ressuscitado.
Louvado sejais!
por Vós foram criadas todas as coisas.
Fostes formado no seio materno de Maria,
fizestes-Vos parte desta terra,
e contemplastes este mundo
com olhos humanos.
Hoje estais vivo em cada criatura
com a vossa glória de ressuscitado.
Louvado sejais!
Espírito Santo, que, com a vossa luz,
guiais este mundo para o amor do Pai
e acompanhais o gemido da criação,
Vós viveis também nos nossos corações
a fim de nos impelir para o bem.
Louvado sejais!
guiais este mundo para o amor do Pai
e acompanhais o gemido da criação,
Vós viveis também nos nossos corações
a fim de nos impelir para o bem.
Louvado sejais!
Senhor Deus, Uno e Trino,
comunidade estupenda de amor infinito,
ensinai-nos a contemplar-Vos
na beleza do universo,
onde tudo nos fala de Vós.
Despertai o nosso louvor e a nossa gratidão
por cada ser que criastes.
Dai-nos a graça de nos sentirmos
intimamente unidos
a tudo o que existe.
Deus de amor,
mostrai-nos o nosso lugar neste mundo
como instrumentos do vosso carinho
por todos os seres desta terra,
porque nem um deles sequer
é esquecido por Vós.
Iluminai os donos do poder e do dinheiro
para que não caiam no pecado da indiferença,
amem o bem comum, promovam os fracos,
e cuidem deste mundo que habitamos.
Os pobres e a terra estão bradando:
Senhor, tomai-nos
sob o vosso poder e a vossa luz,
para proteger cada vida,
para preparar um futuro melhor,
para que venha o vosso Reino
de justiça, paz, amor e beleza.
Louvado sejais!
Amen.
comunidade estupenda de amor infinito,
ensinai-nos a contemplar-Vos
na beleza do universo,
onde tudo nos fala de Vós.
Despertai o nosso louvor e a nossa gratidão
por cada ser que criastes.
Dai-nos a graça de nos sentirmos
intimamente unidos
a tudo o que existe.
Deus de amor,
mostrai-nos o nosso lugar neste mundo
como instrumentos do vosso carinho
por todos os seres desta terra,
porque nem um deles sequer
é esquecido por Vós.
Iluminai os donos do poder e do dinheiro
para que não caiam no pecado da indiferença,
amem o bem comum, promovam os fracos,
e cuidem deste mundo que habitamos.
Os pobres e a terra estão bradando:
Senhor, tomai-nos
sob o vosso poder e a vossa luz,
para proteger cada vida,
para preparar um futuro melhor,
para que venha o vosso Reino
de justiça, paz, amor e beleza.
Louvado sejais!
Amen.
Dado em Roma, junto de São Pedro, no
dia 24 de Maio – Solenidade de Pentecostes – de 2015, terceiro ano do meu
Pontificado.
Franciscus
[1] Cantico
delle creature: Fonti Francescane, 263.[2] Carta ap. Octogesima
adveniens (14 de Maio de 1971), 21:AAS 63
(1971), 416-417.
[3] Discurso à FAO,
no seu XXV aniversário (16
de Novembro de 1970), 4: AAS 62 (1970), 833; L’Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 22/XI/1970), 6.
[4] Carta enc. Redemptor
hominis (4 de Março de 1979),15: AAS 71
(1979), 287.
[5] Cf. Catequese (17 de Janeiro
de 2001), 4: Insegnamenti24/1 (2001), 179; L´Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 20/I/2001), 8.
[6] Carta enc. Centesimus annus (1
de Maio de 1991), 38: AAS 83 (1991), 841.
[8] João Paulo II,
Carta enc. Sollicitudo rei
socialis (30 de Dezembro de 1987), 34: AAS 80
(1988), 559.
[9] Cf. Idem,
Carta enc. Centesimus annus(1
de Maio de 1991), 37: AAS 83 (1991), 840.
[10] Discurso ao
Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé (8 de Janeiro de 2007): AAS 99
(2007), 73.
[11] Carta enc. Caritas in
veritate (29 de Junho de 2009), 51:AAS 101
(2009), 687.
[12] Discurso ao
Bundestag, Berlim
(22 de Setembro de 2011): AAS 103 (2011), 664; L’Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 24/IX/2011), 5.
[13] Bento XVI, Discurso ao
clero da diocese de Bolzano-Bressanone (6 de Agosto de
2008): AAS 100 (2008), 634; L’Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 16/VIII/2008), 5.
[14] Mensagem
para o Dia de Oração pela salvaguarda da criação (1 de Setembro de
2012).
[15] Discurso em
Santa Bárbara, Califórnia (8 de Novembro de 1997);
cf. John Chryssavgis, On Earth as in Heaven: Ecological Vision and
Initiatives of Ecumenical Patriarch Bartholomew (Bronx/Nova Iorque
2012).
[16] Ibidem.
[17] Conferência
no Mosteiro de Utstein, Noruega (23 de Junho de 2003).
[18] Bartolomeu,
Discurso Global Responsibility and Ecological Sustainability: Closing
Remarks, I Cimeira de Halki, Istambul (20 de Junho de 2012).
[19] Tomás de
Celano, Vita prima di San Francesco, XXIX, 81: Fonti
Francescane, 460.
[20] Legenda Maior, VIII, 6: Fonti Francescane, 1145.
[21] Cf. Tomás de
Celano, Vita seconda di San Francesco, CXXIV, 165: Fonti
Francescane, 750.
[22] Conferência
dos Bispos Católicos da África do Sul, Pastoral Statement on the
Environmental Crisis (5 de Setembro de 1999).
[23] Cf.
Francisco, Saudação aos
funcionários da FAO (20 de Novembro de 2014): AAS 106
(2014), 985;L’Osservatore Romano(ed. portuguesa de 27/XI/2014), 3.
[24] V Conferência
Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe, Documento de
Aparecida (29 de Junho de 2007), 86.
[25] Conferência
dos Bispos Católicos das Filipinas, Carta pastoral What is Happening to
our Beautiful Land? (29 de Janeiro de 1988).
[26] Conferência
Episcopal da Bolívia, Carta pastoral El universo, don de Dios para la
vida (2012), 17.
[27] Cf.
Conferência Episcopal Alemã – Comissão para a pastoral social, Der
Klimawandel: Brennpunkt globaler, intergenerationeller und ökologischer
Gerechtigkeit (Setembro de 2006), 28-30.
[28] Pontifício
Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da
Doutrina Social da Igreja, 483.
[29] Francisco, Catequese (5 de Junho de
2013): Insegnamenti1/1 (2013), 280; L´Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 9/VI/2013), 16.
[30] Bispos da
região da Patagónia-Comahue (Argentina), Mensaje de Navidad (Dezembro
de 2009), 2.
[31] Conferência
dos Bispos Católicos dos Estados Unidos da América, Global Climate
Change: A Plea for Dialogue, Prudence and the Common Good (15 de Junho
de 2001).
[32] V Conferência
Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, Documento de
Aparecida (29 de Junho de 2007), 471.
[33] Francisco,
Exort. ap. Evangelii
gaudium (24 de Novembro de 2013), 56: AAS 105
(2013), 1043.
[34] João Paulo II, Mensagem para o
Dia Mundial da Paz de 1990, 12: AAS 82 (1990),
154.
[35] Idem, Catequese (17 de Janeiro
de 2001), 3: Insegnamenti 24/1 (2001), 178; L´Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 20/I/2001), 8.
[36] João Paulo II, Mensagem para o
Dia Mundial da Paz de 1990, 15: AAS 82 (1990),
156.
[38] Angelus com os inválidos,
Osnabrük / Alemanha (16 de Novembro de 1980): Insegnamenti 3/2
(1980), 1232; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de
23/XI/1980), 20.
[39] Bento XVI, Homilia no
início solene do Ministério Petrino (24 de Abril de 2005): AAS 97
(2005), 711; L´Osservatore Romano(ed. portuguesa de 30/IV/2015), 5.
[40] Cf. Legenda
Maior, VIII, 1: Fonti Francescane, 1134.
[41] Catecismo da
Igreja Católica, 2416.
[42] Conferência
Episcopal Alemã, Zukunft der Schöpfung – Zukunft der Menschheit.
Erklärung der Deutschen Bischofskonferenz zu Fragen der Umwelt und der
Energieversorgung (1980), II, 2.
[44] Hom. in
Hexaemeron, 1, 2, 10: PG 29,
9.
[45] Divina
Commedia. Paradiso, Canto XXXIII, 145.
[46] Bento XVI, Catequese (9 de Novembro
de 2005), 3: Insegnamenti1 (2005), 768; L´Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 12/XI/2005), 24.
[47] Idem, Carta
enc. Caritas in
veritate (29 de Junho de 2009), 51:AAS101 (2009),
687.
[48] João Paulo II, Catequese (24
de Abril de 1991), 6: Insegnamenti14/1 (1991), 856; L’Osservatore
Romano(ed. portuguesa de 28/IV/1991), 12.
[49] O Catecismo
ensina que Deus quis criar um mundo em caminho para a perfeição última, o que
implica a presença da imperfeição e do mal físico: ver Catecismo da
Igreja Católica,310.
[50] Cf. Conc.
Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes,
36.
[51] Tomás de
Aquino, Summa theologiaeI, q. 104, art. 1, ad 4.
[52] Idem, In
octo libros Physicorum Aristotelis expositio, lib. II, lectio 14.
[53] Coloca-se,
nesta perspectiva, a contribuição do P. Teilhard de Chardin; veja-se Paulo VI, Discurso
numa fábrica químico-farmacêutico (24 de Fevereiro de 1966): Insegnamenti 4
(1966), 992-993; João Paulo II, Carta
ao reverendo P. George V. Coyne(1 de Junho de 1988): Insegnamenti 11/2
(1988), 1715; Bento XVI, Homilia na
Celebração das Vésperas, em Aosta (24
de Julho de 2009): Insegnamenti 5/2 (2009), 60.
[54] João Paulo II, Catequese (30 de Janeiro
de 2002), 6: Insegnamenti 25/1 (2002), 140; L´Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 2/II/2002), 12.
[55] Conferência
Episcopal do Canadá – Comissão para a Pastoral Social, You love all
that exists… All things are yours, God, Lover of Life (4 de Outubro de
2003), 1.
[56] Conferência
dos Bispos Católicos do Japão, Reverence for Life. A Message for the
Twenty-First Century (1 de Janeiro de 2001), 89.
[57] João Paulo II, Catequese (26 de Janeiro
de 2000), 5: Insegnamenti23/1 (2000), 123;L´Osservatore
Romano(ed. portuguesa de 29/I/2000), 8.
[58] Idem, Catequese (2 de Agosto de
2000), 3: Insegnamenti 23/2 (2000), 112; L´Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 5/VIII/2000), 8.
[59] Paul Ricoeur, Philosophie
de la volonté. 2ª parte:Finitude et culpabilité (Paris
2009), 216.
[60] Summa
theologiae I, q. 47, art. 1.
[61] Ibidem.
[62] Cf.ibid.,
art. 2, ad. 1; art. 3.
[64] Cantico delle
creature: Fonti Francescane, 263.
[65] Cf.
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, A Igreja e a questão
ecológica (1992), 53-54.
[66] Ibid., 61.
[67] Francisco,
Exort. ap.Evangelii
gaudium (24 de Novembro de 2013), 215: AAS105
(2013), 1109.
[68] Cf. Bento XVI,
Carta enc. Caritas in
veritate(29 de Junho de 2009), 14:AAS101 (2009), 650.
[69] Catecismo da
Igreja Católica, 2418.
[70] Conferência
do Episcopado Dominicano, Carta pastoral Sobre la relación del hombre
con la naturaleza (21 de Janeiro de 1987).
[71] João Paulo II,
Carta enc. Laborem exercens (14
de Setembro de 1981),19: AAS 73 (1981), 626.
[72] Carta enc. Centesimus annus (1
de Maio de 1991), 31: AAS 83 (1991), 831.
[73] Carta enc. Sollicitudo rei
socialis (30 de Dezembro de 1987), 33:AAS 80
(1988), 557.
[74] Discurso aos
indígenas e agricultores do México,
em Cuilapán (29 de Janeiro de 1979), 6: AAS 71 (1979), 209; L’Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 11/II/1979), 4.
[75] Homilia na Missa
celebrada para os agricultores,
em Recife/Brasil (7 de Julho de 1980), 4: AAS 72 (1980), 926;L´Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 20/VII/1980), 13.
[76] Cf. Mensagem para o
Dia Mundial da Paz de 1990, 8: AAS 82 (1990),
152.
[77] Conferência
Episcopal do Paraguai, Carta pastoral El campesino paraguayo y la
tierra (12 de Junho de 1983), 2, 4, d.
[78] Conferência
Episcopal da Nova Zelândia, Statement on Environmental Issues (1
de Setembro de 2006).
[79]Carta enc. Laborem exercens (14
de Setembro de 1981), 27: AAS 73 (1981), 645.
[80] Por isso, São
Justino podia falar de «sementes do Verbo» no mundo. Cf. II Apologia 8,
1-2; 13, 3-6: PG 6, 457-458; 467.
[81] João Paulo II, Discurso aos
representantes da ciência, da cultura e dos estudos superiores na Universidade
das Nações Unidas, em Hiroxima (25 de Fevereiro de 1981), 3: AAS 73
(1981), 422.
[82] Bento XVI,
Carta enc. Caritas in
veritate (29 de Junho de 2009), 69:AAS 101
(2009), 702.
[83] Romano
Guardini, Das Ende der Neuzeit(Würzburg9 1965), 87.
[84] Ibidem.
[85] Ibid., 87-88.
[86] Pontifício
Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da
Doutrina Social da Igreja, 462.
[87] Romano
Guardini, Das Ende der Neuzeit (Würzburg9 1965),
63-64.
[88] Ibid.,
64.
[89] Cf. Bento XVI,
Carta enc. Caritas in
veritate (29 de Junho de 2009), 35: AAS 101
(2009), 671.
[90] Ibid., 22: o. c., 657.
[91] Francisco,
Exort. ap. Evangelii
gaudium (24 de Novembro de 2013), 231: AAS 105
(2013), 1114.
[92] Romano
Guardini, Das Ende der Neuzeit (Würzburg9 1965),
63.
[93] João Paulo II,
Carta enc. Centesimus annus (1
de Maio de 1991), 38: AAS83 (1991), 841.
[94] Cf.
Declaração Love for Creation. An Asian Response to the Ecological
Crisis: Colóquio promovido pela Federação das Conferências Episcopais da
Ásia, Tagaytay (31 de Janeiro a 5 de Fevereiro de 1993), 3.3.2.
[95] João Paulo II,
Carta enc. Centesimus annus (1
de Maio de 1991),37: AAS 83 (1991), 840.
[96] Bento XVI, Mensagem para o
Dia Mundial da Paz de 2010, 2: AAS 102 (2010),
41.
[97] Idem, Carta
enc. Caritas in
veritate (29 de Junho de 2009), 28:AAS 101
(2009), 663.
[98] Cf. Vicente
de Lerins, Commonitorium primum, cap. 23: PL 50,
668: «Ut annis scilicet consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur
aetate – Fortalece-se com o decorrer dos anos, desenvolve-se com o
andar dos tempos, cresce através das idades».
[99] N. 80: AAS 105
(2013), 1053.
[100] Conc. Ecum.
Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes,
63.
[101] Cf. João Paulo II,
Carta enc. Centesimus annus (1
de Maio de 1991), 37: AAS 83 (1991), 840.
[102] Paulo VI, Carta enc. Populorum
progressio (26 de Março de 1967), 34: AAS 59
(1967), 274.
[103] Bento XVI,
Carta enc. Caritas in
veritate (29 de Junho de 2009), 32: AAS 101
(2009), 666.
[109] Mensagem para o
Dia Mundial da Paz de 1990,
6: AAS 82 (1990), 150.
[110] Discurso à
Pontifícia Academia das Ciências (3 de Outubro de 1981), 3: Insegnamenti 4/2
(1981), 333;L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 11/X/1981), 8.
[111] Mensagem para o
Dia Mundial da Paz de 1990,
7: AAS 82 (1990), 151.
[112] João Paulo II, Discurso
à 35ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial (29 de Outubro de
1983), 6: AAS 76 (1984), 394; L’Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 13/XI/1983), 7.
[113] Conferência
Episcopal da Argentina – Comissão de Pastoral Social, Una tierra para
todos (Junho de 2005), 19.
[114] Declaração do
Rio sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento,
Rio de Janeiro (14 de Junho de 1992), princípio 4.
[115] Francisco,
Exort. ap. Evangelii
gaudium (24 de Novembro de 2013), 237: AAS 105
(2013), 1116.
[116] Bento XVI,
Carta enc. Caritas in
veritate (29 de Junho de 2009), 51: AAS 101
(2009), 687.
[117] Alguns
autores puseram em evidência os valores que muitas vezes se vivem, por exemplo,
nas «villas», «chabolas» ou favelas da América Latina: ver Juan
Carlos Scannone S.I., «La irrupción del pobre y la lógica de la
gratuidad», in Juan Carlos Scannone e Marcelo Perine (eds.), Irrupción
del pobre y quehacer filosófico. Hacia una nueva racionalidad (Buenos
Aires 1993), 225-230.
[118] Pontifício
Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da
Doutrina Social da Igreja, 482.
[119] Francisco,
Exort. ap. Evangelii
gaudium (24 de Novembro de 2013), 210: AAS 105
(2013), 1107.
[120] Discurso ao
Bundestag, Berlim (22 de
Setembro de 2011): AAS 103 (2011), 668; L’Osservatore
Romano(ed. portuguesa de 24/IX/2011), 5.
[121] Francisco, Catequese (15 de Abril de
2015): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de
16/IV/2015), 20.
[122] Conc. Ecum.
Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes,
26.
[123] Cf. nn.
186-201:AAS 105 (2013), 1098-1105.
[124] Conferência
Episcopal Portuguesa, Carta pastoral Responsabilidade solidária pelo
bem comum (15 de Setembro de 2003), 20.
[125] Bento XVI, Mensagem para o
Dia Mundial da Paz de 2010, 8: AAS 102 (2010),
45.
[126] Declaração
do Rio sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, Rio de Janeiro (14 de
Junho de 1992), princípio 1.
[127] Conferência
Episcopal da Bolívia, Carta pastoral El universo, don de Dios para la
vida (2012), 86.
[128] Pontifício
Conselho «Justiça e Paz», Doc. Energia, Giustizia e Pace (Cidade
do Vaticano 2013), 56.
[129] Carta enc. Caritas in
veritate (29 de Junho de 2009), 67: AAS 101
(2009), 700.
[130] Francisco,
Exort. ap. Evangelii
gaudium (24 de Novembro de 2013), 222: AAS 105
(2013), 1111.
[131] Pontifício
Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da
Doutrina Social da Igreja, 469.
[132] Declaração do
Rio sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (14 de Junho de 1992), princípio 15.
[133] Cf.
Conferência Episcopal do México – Comissão de Pastoral Social, Jesucristo,
vida y esperanza de los indígenas y campesinos (14 de Janeiro de
2008).
[134] Pontifício
Conselho «Justiça e Paz»,Compêndio da
Doutrina Social da Igreja, 470.
[135] Mensagem para o
Dia Mundial da Paz de 2010,
9: AAS 102 (2010), 46.
[137] Ibid., 5: o. c., 43.
[138] Bento XVI,
Carta enc. Caritas in
veritate (29 de Junho de 2009), 50: AAS 101
(2009), 686.
[139] Francisco,
Exort. ap. Evangelii
gaudium (24 de Novembro de 2013), 209: AAS 105
(2013), 1107.
[141] Cf.
Francisco, Carta enc. Lumen fidei (29
de Junho de 2013), 34 [AAS 105 (2013), 577]: «Enquanto unida à
verdade do amor, a luz da fé não é alheia ao mundo material, porque o amor
vive-se sempre com corpo e alma; a luz da fé é luz encarnada, que dimana da
vida luminosa de Jesus. A fé ilumina também a matéria, confia na sua ordem,
sabe que nela se abre um caminho cada vez mais amplo de harmonia e compreensão.
Deste modo, o olhar da ciência tira benefício da fé: esta convida o cientista a
permanecer aberto à realidade, em toda a sua riqueza inesgotável. A fé desperta
o sentido crítico, enquanto impede a pesquisa de se deter, satisfeita, nas suas
fórmulas e ajuda-a a compreender que a natureza sempre as ultrapassa.
Convidando a maravilhar-se diante do mistério da criação, a fé alarga os
horizontes da razão para iluminar melhor o mundo que se abre aos estudos da
ciência».
[142] Idem, Exort.
ap. Evangelii
gaudium (24 de Novembro de 2013), 256: AAS 105
(2013), 1123.
[144] Das Ende der
Neuzeit (Würzburg9 1965),
66-67.
[145] João Paulo II, Mensagem para o
Dia Mundial da Paz de 1990, 1: AAS 82 (1990),
147.
[146] Bento XVI,
Carta enc. Caritas in
veritate (29 de Junho de 2009), 66:AAS101 (2009),
699.
[147] Idem, Mensagem para o
Dia Mundial da Paz de 2010, 11: AAS 102 (2010),
48.
[148] Carta da
Terra, Haia (29 de Junho de 2000).
[149] João Paulo II,
Carta enc. Centesimus annus (1
de Maio de 1991), 39: AAS 83 (1991), 842.
[150] Idem, Mensagem para o
Dia Mundial da Paz de 1990, 14: AAS 82 (1990),
155.
[151] Francisco,
Exort. ap. Evangelii
gaudium (24 de Novembro de 2013), 261: AAS105
(2013), 1124.
[152] Bento XVI, Homilia no
início solene do Ministério Petrino (24 de Abril de 2005): AAS 97
(2005), 710; L´Osservatore Romano(ed. portuguesa de 30/IV/2005), 5.
[153] Conferência
dos Bispos Católicos da Austrália, A New Earth – The Environmental
Challenge (2002).
[154] Romano
Guardini, Das Ende der Neuzeit (Würzburg9 1965),
72.
[155] Francisco,
Exort. ap. Evangelii
gaudium (24 de Novembro de 2013), 71: AAS 105
(2013), 1050.
[156] Bento XVI,
Carta enc. Caritas in
veritate (29 de Junho de 2009), 2:AAS 101 (2009),
642.
[157] Paulo VI, Mensagem para o
Dia Mundial da Paz de 1977: AAS 68 (1976), 709.
[158] Pontifício
Conselho «Justiça e Paz», Compêndio da
Doutrina Social da Igreja, 582.
[159] Um mestre
espiritual, Ali Al-Khawwas, partindo da sua própria experiência, assinalava a
necessidade de não separar demasiado as criaturas do mundo e a experiência de
Deus na interioridade. Dizia ele: «Não é preciso criticar preconceituosamente
aqueles que procuram o êxtase na música ou na poesia. Há um “segredo” subtil em
cada um dos movimentos e dos sons deste mundo. Os iniciados chegam a captar o
que dizem o vento que sopra, as árvores que se curvam, a água que corre, as
moscas que zunem, as portas que rangem, o canto dos pássaros, o dedilhar de
cordas, o silvo da flauta, o suspiro dos enfermos, o gemido dos aflitos…» [Eva
De Vitray-Meyerovitch (ed.),Anthologie du soufisme (Paris 1978),
200].
[160] In II
Sententiarum, 23, 2, 3.
[161] Cántico
Espiritual,XIV, 5.
[162] Ibidem.
[163] Ibid., XIV, 6-7.
[164] João Paulo II,
Carta ap. Orientale lumen (2
de Maio de 1995),11: AAS 87 (1995), 757.
[166] Idem, Carta
enc.Ecclesia de
Eucharistia (17 de Abril de 2003), 8: AAS 95
(2003), 438.
[167] Bento XVI, Homilia na Missa
de Corpus Christi (15 de Junho de 2006): AAS 98
(2006), 513; L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de
24/VI/2006), 3.
[169] João Paulo II, Catequese (2
de Agosto de 2000), 4: Insegnamenti 23/2 (2000), 112; L´Osservatore
Romano(ed. portuguesa de 5/VIII/2000), 8.
[170] Quaestiones
disputatae de Mysterio Trinitatis,
1, 2, concl.
[171] Cf. Tomás de
Aquino, Summa theologiae I, q. 11, art. 3; q. 21, art. 1, ad
3; q. 47, art. 3.
[172] Basílio Magno,
Hom. in Hexaemeron, 1, 2, 6: PG 29, 8.
Nenhum comentário:
Postar um comentário